A AEnergia e os Comboios da Pilhagem
Concluímos, nesta edição, a nossa investigação sobre os três contratos assinados, em 2015, entre o Ministério dos Transportes e a empresa AEnergia, no valor de cerca de mil milhões de dólares.
Na edição passada reportámos que a AEnergia recebeu um pagamento adiantado de 75 milhões de dólares, relativo a um contrato de 500 milhões de dólares que acabou por não ser executado, por falta de financiamento. Logo, a AEnergia deve devolver os 75 milhões de dólares, uma vez que não prestou quaisquer serviços que justifiquem tão elevado montante. Ademais, o contrato nunca mereceu o visto do Tribunal de Contas e não foi o Ministério dos Transportes que mandou pagar tal verba.
Usando do direito de resposta, a AEnergia, mais conhecida pelo nome da sua offshore AEnergy S.A., enviou-nos um texto, que publicámos. A nossa decisão, no que diz respeito a este assunto, foi encaminhar o caso à Procuradoria-Geral da República, para que seja instaurado o respectivo inquérito criminal, a que estaremos atentos.
As comissões de cem milhões de dólares
A AEnergia assinou dois contratos com a multinacional norte-americana General Electric (GE) para esta vender locomotivas e serviços ao governo por valores inferiores. De seguida, assinou contratos com o governo de José Eduardo dos Santos para a venda das mesmas locomotivas e dos mesmos serviços, mas por um valor superior. Assim, de forma absurda, em dois contratos avaliados em 453,6 milhões de dólares, a AEnergia arrecadou uma comissão de quase cem milhões de dólares, o que corresponde a 22 por cento do valor total dos contratos.
Os dois contratos assinados a 29 de Maio de 2015 entre o Ministério dos Transportes e a AEnergia espelham a mesma lógica de saque fácil.
Por 429,5 milhões de dólares, a AEnergia, num dos contratos, comprometeu-se a vender cem locomotivas (modelo GE C30ACI) a Angola. Num outro contrato, esta empresa comprometeu-se a modernizar oito locomotivas (modelo GE U20C) por um valor superior a 24,1 milhões de dólares.
Nos contratos celebrados entre a GE e a AEnergia, as cem locomotivas acima referidas foram orçamentadas em 346 milhões de dólares. Assim, a AEnergia, só com a assinatura de papéis, teve um ganho de 83,5 milhões de dólares. No segundo contrato, para a modernização das oito locomotivas, o valor acordado entre a GE e a AEnergia foi de 14,2 milhões de dólares. Aqui, o encaixe da AEnergia é de mais dez milhões de dólares. Portanto, apenas como intermediária, a AEnergia arrecada 93,5 milhões de dólares.
Passados quatro anos, a AEnergia apenas entregou 79 das cem locomotivas previstas.
A versão da AEnergia
Inicialmente, os contratos deveriam ter sido financiados pelo Banco de Exportação e Importação dos Estados Unidos da América (EximBank USA), que, a dada altura, se manifestou afinal indisponível. “A AEnergy procurou outras fontes alternativas de financiamento com o apoio da GE. Nesse sentido, foi proposta a estruturação de um financiamento com a Agência de Crédito à Exportação do Canadá – EDC (Export Development Canada)”, afirma o proprietário e presidente da AE, Ricardo Filomeno Duarte Leitão Machado.
Com efeito, segundo Ricardo Machado, a sua diligência “resultou na negociação e assinatura entre o MINFIN [Ministério das Finanças] e o EDC, para pagar 85 por cento do Contrato de Aquisição das Locomotivas Novas e do Contrato de Reabilitação das Locomotivas Usadas, U20, sendo o restante assegurado por recursos próprios do Tesouro”.
Grosso modo, assevera que a sua empresa “cumpriu todos os critérios de compliance do financiamento internacional envolvido, do EDC – Export Development Canada”. Afirma, de forma contraditória, que a “AE não negociou qualquer contrato de financiamento ao Estado Angolano nem é parte do contrato, apenas promoveu activamente em conjunto com a GE a obtenção de fontes alternativas de financiamento”.
Em relação ao pagamento antecipado de 68 milhões de dólares para a execução do contrato de aquisição das locomotivas, um ano e meio antes do financiamento do banco canadiano, Ricardo Machado justifica-se. Primeiro, faz notar que o EximBank dos EUA e a GE Capital (do grupo GE) falharam no asseguramento do financiamento previsto. “Nesse contexto, durante um ano e meio antes do financiamento pelo EDC, a AE assegurou todo o programa, dado o atraso no processo de financiamento”, afirma.
Ademais, Ricardo Machado escuda-se nos despachos presidenciais n.º 280/16 e n.º 283/16, assinados por José Eduardo dos Santos, que autorizaram os contratos de aquisição de cem novas locomotivas e a reabilitação de oito locomotivas.
O proprietário da AE afirma, ao Maka Angola, que a sua empresa “não cobra comissões, porque não é uma simples entidade mediadora de contratos ou agenciadora de negócios. Desenvolve, contratualiza e implementa projectos integrados”.
“A GE, sendo fabricante de equipamentos, não desenvolve projectos a risco, não querendo assumir os custos de desenvolvimento e estudo prévio dos projectos. Por outro lado, a GE não se envolve na execução e operacionalização dos projectos em soluções integrais ‘chave na mão’”, explica Ricardo Machado.
Segundo o gestor, para suporte dos contratos, “a AE fez levantamento do sector, de requisitos do cliente, correspondentes especificações de produto, termos de referência, procedimentos de integração de equipamentos e tecnologias, o comissionamento, teste e operacionalização dos entregáveis junto dos três operadores (Caminhos de Ferro de Luanda – CFL, Caminhos de Ferro de Benguela – CFB e Caminhos de Ferro de Moçâmedes – CFM)”.
Adiante explica, sem apresentar números, que a AE “negociou e estruturou o financiamento e integrou custos logísticos e custos locais, incluindo taxas alfandegárias, de importação e serviços”.
Em relação à grande diferença de preços cobrados pela GE e AE nos referidos contratos, Ricardo Machado justifica-se: “Os valores contratados são confidenciais, estando obrigados contratualmente à sua não divulgação, com excepção dos publicados nos Despachos Presidenciais. Realçamos desconhecer a fonte dos valores referidos e a sua quantificação.”
E acrescenta, embora sem indicar números: “Sem prejuízo do referido, o valor dos contratos está integralmente reflectido nas contas da AE que foram auditadas e sujeitas a tributação em Angola. As empresas não têm por prática revelar publicamente as suas margens comerciais.”
O dono da AEnergia especifica ainda que “a margem comercial da AE na transacção é consideravelmente inferior à margem comercial” referida por este portal. Justifica que essa margem contempla o pagamento de “todos os custos alfandegários, impostos, logística e transporte em Angola, recursos humanos alocados ao projecto, estudos e todos os demais custos de desenvolvimento do projecto”.
Nota também que “os contratos de venda, de modernização de locomotivas, prestação de serviços associados” incluem não só as locomotivas como também os demais acessórios. E, não apresentando um único relatório ou evidência material do afirmado repete-se: “A estrutura de custos locais, parte integrante da estrutura de financiamento aprovado pelo EDC, para além da margem de lucro com encaixe do risco significativo de uma operação com esta complexidade.”
A versão do Ministério dos Transportes
Por outro lado, fonte fidedigna do Ministério dos Transportes revela que esta instituição teve de estruturar uma nova operação directamente com a GE para a entrega das 21 locomotivas em falta. “Pagámos directamente à GE”, afirma o interlocutor do ministério.
“Havia, no âmbito da responsabilidade social, equipamentos que a GE não liberava, como os vagões médicos (clínicas móveis), simuladores e drones para vistoria das linhas. A entrega dos vagões estava dependente do cumprimento do contrato, que a AE já não estava em condições de honrar”, revela a mesma fonte, que prossegue:
“A GE emitiu-nos [ao Ministério dos Transportes] uma garantia de performance bond [desempenho] com um banco de primeira linha. Assegurámos que a AE não mais veria esses recursos.”
Após a resolução e exclusão da intermediária AEnergia, a GE assumiu a entrega directa, ao governo angolano, das clínicas móveis, do simulador para a formação de maquinistas e técnicos ferroviários e dos drones, conforme nota do Ministério dos Transportes.
De acordo com esta entidade estatal, a GE iniciará a entrega das locomotivas restantes em meados do próximo ano.
Quanto aos centros de formação e a recuperação de locomotivas, o Ministério dos Transportes é peremptório em afirmar que os três centros existentes “foram construídos e apetrechados no âmbito da reabilitação dos Caminhos de Ferro. Vamos activá-los agora”. Logo, sem o concurso da AEnergia.
“A AEnergia diz que foram os seus técnicos que recuperaram as locomotivas. A GE diz que os técnicos são seus. Não percebemos por que razão temos esses contratos com a AEnergia”, lamenta a fonte.
“Porque é que uma companhia americana como a GE, uma superpotência com rendimentos superiores aos de Angola, se sujeita a um entendimento com uma entidade como esta AEnergia?”, questiona-se a fonte do ministério.
“A GE é obrigada a cumprir várias disposições legais americanas contra a corrupção, como a FCPA [Lei sobre Práticas de Corrupção no Exterior] e a Lei Patriota, e mete-se nesta aventura com a AEnergia”, comenta, como conclusão, o interlocutor ministerial.
Enquadramento legal
“Não se vislumbra qual a necessidade material de o Ministério dos Transportes realizar um contrato com a AEnergia, quando tem relações directas com a GE. Introduziu um intermediário para quê?”, questiona-se Rui Verde.
O analista jurídico do Maka Angola nota que a AEnergia fundamenta a sua intervenção nos contratos paralelos e separados com o Ministério dos Transportes e a GE, para a venda dos mesmos equipamentos e serviços em dois pontos. Estes são a elaboração de estudos e projectos prévios, bem como a assunção do risco que a GE não assume.
Sobre os estudos, Rui Verde questiona se houve algum procedimento público e alguma decisão do Conselho de Ministros. A resposta é negativa.
“A isto acresce que a prática habitual implica que os estudos e projectos sejam pagos em separado das soluções que propõem, caso contrário não podem ser vistos como pareceres técnicos, mas sim como meras operações de marketing”, argumenta o jurista.
“Sobre o segundo aspecto, o risco: não se vislumbra onde esteja o risco, pois os contratos só avançaram com garantia de financiamento, que pelos vistos foi obtida com a colaboração da GE”, acrescenta Rui Verde.
Segundo o analista, a AEnergia recebeu determinados montantes avultados, antes sequer de ter sido aprovado o financiamento externo para a contratação. “Assim sendo, em vez de inexistência de risco, há uma inversão de risco, que é assegurado pelo Estado angolano.”
Consequentemente, não restam dúvidas de que cabe à Procuradoria-Geral da República proceder à investigação criminal referente a todos estes factos.