AEnergia e o Saque de 75 Milhões de Dólares

De uma assentada, a empresa AEnergia S.A., com menos de dois anos de existência e sem qualquer historial, assinou com o Estado angolano três contratos no valor aproximado de mil milhões de dólares, para venda e manutenção de locomotivas para o Instituto Nacional dos Caminhos de Ferro de Angola.
No essencial, detalhamos aqui sobretudo o esquema aplicado ao terceiro contrato, no valor de 500 milhões de dólares, que, não tendo sido executado por falta de financiamento, resultou no saque de 75 milhões de dólares dos cofres do Estado, a título de adiantamento.
Na edição seguinte, revelaremos ainda o conteúdo dos dois outros contratos, os quais totalizam um valor arredondado de 500 milhões de dólares.
Todos estes contratos foram assinados a 29 de Maio de 2015, entre o Ministério dos Transportes, representado pelo então secretário de Estado Mário Domingues, e a AEnergia S.A., representada pelo seu proprietário legal, o cidadão português Ricardo Filomeno Duarte Leitão Machado (na foto principal). Este detém 99,9 por cento do capital da empresa, também conhecida por AEnergy S.A.
O primeiro contrato
Trata-se de um contrato, segundo cópia em posse do Maka Angola, que visava a remodelação, modernização e readaptação, por um valor global de 500 milhões de dólares, das oficinas de manutenção de material circulante ferroviário, localizadas em Luanda, Lobito, Huambo e Lubango.
Em 2013, o Ministério dos Transportes assinou um Memorando de Entendimento com a General Electric, referente à implantação de um sistema ferroviário moderno em Angola.

Dois anos depois, aparece a AEnergia a assumir-se como parceira comercial da GE, para materializar, “com maior eficácia”, o Memorando de Entendimento entre o Governo e a referida multinacional.
Logo após a assinatura do contrato, a 1 de Junho de 2015, a AEnergia emitiu a factura para o primeiro pagamento. O Estado angolano procedeu, com celeridade, ao adiantamento de uma verba à AEnergia S.A., no valor de 75 milhões, sem o visto do Tribunal de Contas, como era exigido na cláusula 20.ª do contrato. Para o contrato entrar em vigor, teria de haver a aprovação do presidente da República (não sucedeu) e o visto do Tribunal de Contas (não sucedeu). Logo, o adiantamento foi realizado sem qualquer base contratual.
A versão da AEnergia
“Fomos informados pelo Ministério dos Transportes que este submeteu os processos ao Tribunal de Contas em tempo adequado, cumprindo os requisitos legais a que estava obrigado”, responde ao Maka Angola o presidente da AEnergia, Ricardo Machado.
Sobre o adiantamento dos 75 milhões de dólares recebidos pela AEnergia, o seu presidente explica que o financiamento do referido contrato implicava “um pagamento prévio, para que subsequentemente se executassem desembolsos”.
“Tendo em conta as referidas imposições das entidades financiadoras, o Governo
acedeu às mesmas e decidiu fazer este pagamento inicial de modo a não atrasar o
processo de fabricação dos equipamentos que era prioritário e necessário à
integração e à operacionalização das locomotivas novas e modernizadas”,
esclarece.
Mais informa que a AEnergia “tem cumprido os fornecimentos considerados prioritários pelo MINTRANS [Ministério dos Transportes], tendo o valor de adiantamento pago correspondido a fornecimentos de serviços e acessórios de material circulante”.
Em relação ao financiamento inicialmente previsto, o proprietário da AEnergia reconhece que a GE Capital [do grupo General Electric] “não deu seguimento ao compromisso de financiamento” conforme havia sido estabelecido no Memorando de Entendimento entre a GE e o MINTRANS em 2016 e 2017, não tendo havido até à data, financiamento disponível para concluir este contrato.
A versão do Ministério dos Transportes
Fonte fidedigna do Ministério dos Transportes esclarece que os 75 milhões de dólares não foram pagos por esta instituição, por falta de cabimentação no seu orçamento.
“Só pode ter sido pago directamente pelo Banco Nacional de Angola (BNA). Alguém deu instruções ao BNA para pagar os 75 milhões de dólares. Não temos qualquer informação sobre o que a AEnergia fez com esse dinheiro”, afirma a fonte. “Com que instrução o BNA [na altura governado por José Pedro de Morais] emitiu uma ordem de pagamento? Temos de verificar quem deu a instrução e com base em quê.”
O mesmo interlocutor esclarece ainda que, caso a AEnergia tivesse executado parte do referido contrato – apesar de o mesmo não ter sido implementado por falta de financiamento – “o Ministério dos Transportes teria provas de como foi gasto o dinheiro”.
“São 75 milhões de dólares! Sentimos dificuldades, enquanto instituições governamentais, de falarmos em falta de recursos financeiros no país quando temos muitas sobras, como estes 75 milhões”, nota a fonte.
“Qualquer milhão de dólar é muito importante para Angola. É imperativo e urgente recuperar cada milhão. Temos de saber onde foi parar esse dinheiro [75 milhões de dólares].”
Segundo esta fonte, as condições macroeconómicas do país continuam a deteriorar-se. Por conta disso, o Ministério dos Transportes, que já teve orçamentos acima de mil e quinhentos milhões de dólares em projectos, tem inscritos no orçamento deste ano não mais do que o equivalente a 100 milhões de dólares. O governo deve fazer um levantamento exaustivo “destes recursos soltos” para potenciar o investimento em infra-estruturas.
Segundo o nosso interlocutor do Ministério, é impossível incluir o material doado ao governo angolano pela GE, no âmbito da responsabilidade social corporativa, como parte dos gastos feitos pela AEnergia com os 75 milhões de dólares.
Trata-se de vagões médicos [clínicas móveis], simuladores para formação de ferroviários e drones para a vistoria das linhas férreas. “Não é um facto que tenham sido comprados pela AEnergia. Negativo! O Ministério dos Transportes mandou retirar a marca da AEnergia dos vagões, porque esta nada ter a ver com a doação. Foi oferta da GE ao Estado”, refere o entrevistado.
A fonte afirma ainda não ter sido feito qualquer investimento com os fundos em causa, nem em infra-estruturas, nem em acções de formação. “Então, façamos as contas. É roubo”, conclui.
A lei
Já o analista jurídico do Maka Angola, Rui Verde, coloca a ênfase no facto de o contrato nunca ter sido verdadeiramente executado. “Estamos perante possível responsabilidade criminal, provavelmente burla, peculato e branqueamento de capitais”, argumenta.
Do ponto de vista jurídico, há um aspecto que deixa qualquer analista perplexo: o facto de não serem identificados os equipamentos e trabalhos necessários para “remodelar e modernizar” as oficinas.
De acordo com o contrato, cabe arbitrariamente à AEnergia elaborar o Caderno de Encargos e decidir aquilo que vai fazer e instalar. A terminologia “remodelar e modernizar” é demasiado vaga e pouco concreta. “As cláusulas 3.ª e 8.ª aparentam dar à empresa privada toda a discricionariedade para gastar 500 milhões de dólares sem qualquer fiscalização”, explica Rui Verde.
Segundo o jurista, “um contrato adequadamente elaborado teria como base um plano de trabalhos e equipamentos previamente definido. Assim, não passa de uma espécie de entrega de envelope com 500 milhões de dólares à AEnergia.
As menções a um eventual futuro Projecto de Intervenção são feitas nos considerandos do Contrato, e não integram o seu articulado ou qualquer anexo. Consequentemente, “temos um contrato extremamente incerto na defesa do interesse público, pois não se sabe onde, especificamente, se vai gastar o dinheiro, e tudo indica que apenas à AEnergia competirá decidir”, prossegue o analista do Maka Angola.
“Este tipo de esquema assemelha-se ao que foi usado no famoso caso criminal dos 500 milhões dólares, em que esta quantia era necessária como avanço, para garantir um financiamento de 30 mil milhões que nunca existiu”, exemplifica Rui Verde. Em conversa com o activista Luaty Beirão, anotamos o seu seco veredicto: “Isso é gatunice sem limites.”