Os Consumíveis do Saque no Kuando-Kubango

No ano passado, só a sede do governo provincial do Kuando-Kubango gastou mais de 508 milhões de kwanzas (o equivalente a 551 mil dólares) na aquisição de materiais de consumo corrente de escritório, particularmente toners e tinteiros para impressoras. Seguem-se as resmas de papel, algumas pastas de arquivo, envelopes e esferográficas – tudo isto para uma estrutura com cerca de 180 funcionários e 30 impressoras, várias das quais inventariadas como obsoletas.

Em 2023, as despesas com os mesmos consumíveis atingiram os 750 milhões de kwanzas (o equivalente a mais de um milhão de dólares na altura) para a sede do governo provincial. Em dois anos, somam-se mais de 1,3 mil milhões de kwanzas.

De fora ficam os gastos em consumíveis de escritório feitos pelas administrações municipais da província, que também primam pelo absurdo, e algumas das quais nem sequer têm electricidade, como Nancova, Mavinga e Rivungo. A título de exemplo, a empresa Honesty recebeu 17,5 milhões de kwanzas em consumíveis de escritório, que forneceu aos municípios de Mavinga, Menongue e Nancova. Trata-se de tinteiros, resmas de papel, esferográficas, entre outros. Só no âmbito da “operacionalização do Programa de Combate contra a Pobreza”, a Honesty cobrou dois milhões de kwanzas pelo fornecimento de esferográficas, tinteiros e resmas de papel. É como se a pobreza tivesse as suas próprias impressoras.

Veja-se o caso de Nancova, com pouco mais de três mil habitantes. A empresa Honesty cobrou um milhão em alimentos para os pobres e 2,5 milhões em tinteiros e papel para a administração local que regista a pobreza e não tem electricidade.

Desde Janeiro de 2025, o Kuando-Kubango deixou de existir enquanto segunda maior província de Angola, dando lugar a duas províncias independentes: o Kuando e o Kubango. José Martins, o então governador, permanece no palácio de Menongue, agora como governador do Kubango. Já o Kuando está sob governo do general Lúcio do Amaral, com a capital em Mavinga.

Para efeitos da presente investigação, fazemos referência a uma só província, do Kuando-Kubango, uma vez que os factos reportam a 2023 e 2024, período em que vigorava uma entidade única. Os valores apresentados não são absolutos, porque resultam apenas dos documentos consultados pelo Maka Angola.

O Kuando-Kubango (KK), com pouco mais de 600 mil habitantes, apresenta um dos índices mais elevados de pobreza extrema do país.

O volume das despesas do governo provincial é equiparável ao da autarquia da segunda casa da maioria dos dirigentes e da elite angolana: Lisboa. Nesta cidade, os gastos totais em consumíveis de escritório não ultrapassam os 500 mil euros anuais. Estamos a falar de uma cidade europeia com extensos serviços públicos que compreendem mais de 17 mil funcionários.

No Kuando-Kubango, os gastos com a aquisição de papel indiciam que este é, de toda a África, o lugar onde se produzem mais documentos administrativos locais – um recorde que deve deixar o governo do general João Lourenço muito orgulhoso. Trata-se do maior fingimento de que há registo num país africano que apregoa a luta contra a corrupção.

O Chimuco

Em 2022, o Maka Angola denunciou os esquemas do empresário Elias Piedoso Chimuco, que reclamava uma dívida pública equivalente a mais de 200 milhões de dólares por fornecimentos fictícios à província do Kuando-Kubango. As invenções de Chimuco foram autenticadas em 2019, pelo então governador Pedro Mutindi.

Na investigação do Maka, explicámos que Chimuco alegou ter vendido, em 2016, 152 800 caixas de arquivo e 147 500 caixas de resmas de papel ao governo provincial do Kuando-Kubango para o “programa de apoio às famílias mais carenciadas”. E apresentou uma factura de mais de 884 milhões de kwanzas (na altura equivalentes a mais de cinco milhões de dólares), por ter fornecido pastas de arquivo e papéis aos mais pobres.

De forma previsível, a investigação foi devidamente ignorada pela Procuradoria-Geral da República (PGR). O sistema judicial tem estado a operar apenas contra pessoas que o actual regime teme, ou com quem tem contas a ajustar, assim como os indesejáveis ou descartáveis.

Assim, prossegue impunemente a ficção da compra fictícia de papéis, pastas de arquivo, tinteiros e toners, sempre ao serviço da prosperidade dos servidores públicos locais e dos comerciantes associados – que aparentemente vendem de tudo um pouco, como veremos. 

O troféu do padrinho

Celestino, um dos filhos de Pedro Mutindi, facturou nos últimos dois anos cerca de 137 milhões de kwanzas a vender toners e tinteiros ao governo provincial de José Martins. Vai para ele o “troféu” de maior fornecedor. Pedro Mutindi é o padrinho político de José Martins.

Ora, a empresa Tchongo Construções Lda., de Celestino António Mutindi e Adriana Elvira Jamba, constituída em 2017, é uma empresa de construção civil, obras públicas e consultoria, com sede em Viana, Luanda. Só em 2024, vendeu toners e tinteiros ao governo provincial no valor de 73 milhões e 708 mil kwanzas. A 13 de Fevereiro de 2023, a mesma empresa de construção, para além de outras vendas, embolsou 10 milhões de kwanzas com o fornecimento de frescos e frutos do mar (pungos, lagostas e caranguejos) ao palácio do senhor governador.

Em 2019, o Maka Angola expôs o esquema ridículo de Pedro Mutindi, que usava o seu motorista, Fernando Lopes Watalala, como testa-de-ferro na venda fictícia de materiais de construção, toners, tinteiros e alimentos – incluindo ovos por metro cúbico – ao Hospital Geral do Kuando-Kubango.

Às contas!

É por via dessa impunidade que opera o quarteto fantástico de decisores e executores do governo provincial, os principais responsáveis morais pelos esquemas do “papo da galinha”: o governador José Martins; o secretário-geral, Adelino Mangonga Manuel; o director do Gabinete de Estudos, Planeamento e Estatística (GEPE), Elias Paganini Hossi da Silva; e o chefe do Departamento de Gestão do Orçamento e Contabilidade, Pedro Kawengo Chioca Cufa.

A administração de José Martins perfilhou mais de 20 fornecedores de consumíveis de escritório para a sede do seu governo. Em 2023, eram mais de 30 os fornecedores. Estes mesmos fornecedores também prestam serviços em todas as áreas onde há dinheiro. Mas, como se diz, o diabo está nos detalhes.

As irmãs Isabel e Rebeca Chinjole Fernandes, residentes no Lobito, em Benguela, facturaram mais de 105 milhões de kwanzas, em 2023 e 2024, com a venda de toners, tinteiros e pastas de arquivo para o governo provincial através da sua empresa, a Otchaly – Comércio e Serviços Lda. Desse valor reportaram a venda de 57 toners para o gabinete de apoio ao governador, em 2024, pelo valor de oito milhões de kwanzas. As irmãs também se desdobraram na reparação da conduta de água e electrobomba, troca de sanitas e limpeza de fossas do palácio e casas protocolares, bem como na venda de lubrificantes e filtros para a manutenção de viaturas do governo provincial.

Por sua vez, nos dois anos de muita tinta, a empresa Galf – Comércio e Serviços Lda. (SU), de Garcia Alfredo, embolsou mais de 81 milhões de kwanzas, pela venda de toners, tinteiros, resmas de papel e pastas de arquivo ao governo provincial.

A Galf, com sede em Luanda, no Bairro Azul, foi constituída a 27 de Junho de 2024 no Guichet Único de Empresas em Luanda, como sociedade unipessoal (SU). No entanto, antes da sua existência, em 2023, os pagamentos canalizados pelo governo de José Martins à Galf totalizaram exactos 74 milhões de kwanzas por toners, tinteiros, resmas de papel e pastas de arquivo. Temos, então, o caso de uma empresa então inexistente – uma empresa-fantasma – a fornecer consumíveis de escritório para o governo provincial. A Galf também vende, entre outros consumíveis, o gás de cozinha do palácio do governo provincial.

Com sede em Benguela, em 2024, a MD Globaltech & Equipment, de Maurício Dumbo Vinevala Daniel, forneceu os consumíveis para as copiadoras MD-Ricoh C2000 do governo provincial, no valor de 73 milhões e 306 mil kwanzas.

Já a empresa Katakwa (SU), de Felisberto do Rosário Nangolo, recebeu pagamentos no valor total de cerca de 67 milhões de kwanzas pela venda de toners, tinteiros e papel ao governo provincial nos últimos dois anos. 

Em 2023, o Grupo Arlindo Pedro recebeu pagamentos no valor de 53 milhões de kwanzas pela venda de toners, tinteiros e pastas de despacho. Esta mesma empresa também é um exemplo de diversidade de negócios. Em 2024, forneceu lubrificantes para a manutenção de viaturas, materiais de electricidade, pratos e panelas para a copa do governo provincial, o que em 2024 lhe rendeu mais 100 milhões de kwanzas.

Há dois casos interessantes sobre vendedores que vão buscar muito mais dinheiro a outro lado, mas não deixam de lado os “trocos” dos toners, tinteiros e papéis.

O primeiro é o da Sedar Lda., que só no ano passado facturou perto de 900 milhões de kwanzas a vender alimentos ao palácio do governador, às residências dos administradores municipais, para apoio às famílias vulneráveis e merendas escolares sazonais. Em 2023, o Estado pagou a esta empresa 44 milhões de kwanzas pela venda de resmas de papel.

Versátil é também a mana Minga & Filhos. Pode ter feito muito pouco, em 2023, ao ganhar apenas 13 milhões de kwanzas com a venda de resmas de papel ao governo provincial. Mas, pelos serviços de limpeza da Zona A de Menongue, ganhou dos cofres do Estado mais de 200 milhões de kwanzas, para além de outros tantos em 2024, por ter mobilado as residências do procurador provincial e as casas protocolares.

Fonte do Ministério das Finanças explica que os consumíveis de escritório constituem “uma natureza de despesas que não cria processos patrimoniais. Logo, facilita o desvio de fundos públicos e a lavagem de dinheiro”.

As investigações do Maka Angola dão conta do agrupamento de empresas por dirigentes locais. Estas empresas, após as operações de pagamento pelo Estado, repassam em mãos os valores devidos aos governantes ou seus beneficiários.  

Mas quem pode reclamar contra o governador? Em 2023, para receber em apoteose o presidente da República, José Martins mandou imprimir dez mil camisolas com a imagem de João Lourenço, por 53 milhões de kwanzas. A Erbele – Prestação de Serviços Lda. forneceu o lote e foi paga a 6 de Julho do mesmo ano. Compare-se esse valor com os 18 milhões despendidos, a 11 de Agosto de 2023, na aquisição de “roupas usadas para pessoas vulneráveis”, pagos à Dom Projecto – Prestação de Serviços Lda.

Parecem irrisórios, os valores atribuídos à aquisição de papéis, toners e tinteiros no Kuando-Kubango quando comparados com as centenas de milhões de dólares do erário público que desaparecem com a grande corrupção, nas altas esferas do poder e em projectos de vaidade. Porém, os tinteiros do Kuando-Kubango são paradigmáticos, pela forma desabrida e impune com que se engendram esquemas toscos de pilhagem do erário público na administração local.

Na fábula dos esquemas de corrupção, enquanto nas mais altas esferas reina o cabritismo, a nível local parece prosperar a máxima segundo a qual grão a grão a galinha enche o papo.

Em Angola, até existe um Regime Jurídico das Faturas e Documentos Equivalentes (RJFDE), estabelecido pelo Decreto Presidencial n.º 292/18, que se refere à proibição de sobrefacturação e práticas afins, com um regime de pesadas multas, cuja fiscalização competiria à Administração Geral Tributária (AGT). Portanto, o primeiro passo para terminar estes abusos competiria à AGT, que também está a braços com os seus escândalos de pilhagem do erário público.

Depois, obviamente, há a PGR e toda a eventual panóplia de crimes cometidos: tráfico de influências, participação económica em negócio, peculato, abuso de poder, branqueamento de capitais, fraude fiscal… Espera-se acção.

E assim vai Angola, desgovernada.

ADENDA

Foi enviado um pedido de esclarecimentos ao Governo Provincial do Kuando-Kubango, sob a forma de um breve questionário, que reproduzimos abaixo. Até ao momento, não obtivemos resposta, a qual, caso surja entretanto, será divulgada ao abrigo do direito de resposta.

Questionário

Assunto: Pedido de esclarecimentos sobre gastos do Governo Provincial do Cuando-Cubango

Rafael Marques de Morais, natural de Luanda, vem, na qualidade de jornalista independente, apresentar ao Exmo. Sr. Governador José Martins um questionário respeitante aos factos abaixo descritos.

No sentido de garantir a liberdade de expressão, de informação e de contraditório sobre algumas transacções feitas pelo Governo Provincial do Cuando Cubango, vimos colocar as seguintes questões:

Até que ponto poderão estar indiciados crimes de tráfico de influência? Vai iniciar uma auditoria interna ou convidar a PGR, o IGAE e o SIC a investigar?

Em 2024, o Governo Provincial gastou mais de 551 milhões de kwanzas na aquisição de consumíveis de escritório, particularmente toners, tinteiros e resmas de papel a mais de 20 fornecedores. O Governo Provincial gere alguma gráfica? É justificável essa despesa?

Em 2023, o Governo Provincial gastou mais de 700 milhões de kwanzas na aquisição de consumíveis de escritório, particularmente toners, tinteiros e resmas de papel. Para que serviu tanto toner, tinteiro e papel?

Quantas impressoras tem o Governo Provincial?

Tem conhecimento que a província do Cuando-Cubango gasta mais em material de escritório do que a cidade de Lisboa? Qual é a explicação para isso?

Tem conhecimento de que a empresa Tchongo Construções, que mais facturou com a venda de toners e tinteiros, pertence ao filho do antigo governador Pedro Mutindi?

Tem conhecimento que o Governo Provincial gastou 53 milhões de kwanzas para camisolas com a imagem do presidente?

Como enquadra estes actos na Lei da Probidade Pública?”

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