Como Roubar 200 Milhões de Dólares em Angola
Algumas comunidades mais pobres do Kuando-Kubango e, por conseguinte, do mundo poderão bater o recorde mundial de consumo de pastas de arquivo e resmas de papel. Trata-se de um feito resultante da facturação aparentemente fraudulenta de reclamação de dívida pública, no valor de mais de 200 milhões de dólares (ao câmbio de 2016), por parte do Grupo Chicoil. Este é um conglomerado pertencente a Elias Piedoso Chimuco, empresário e membro do Comité Central do MPLA que, na altura, representava a província como deputado eleito pela população local.
O Maka Angola tem em sua posse mais de 60 documentos que revelam o esquema de certificação de dívida pública a favor do Grupo Chicoil pelo então governador provincial Pedro Mutindi, dívida essa que, segundo fontes deste portal, o governo considera pagar, mesmo perante os indícios de fraude.
A 18 de Julho de 2019, Pedro Mutindi remeteu ao Ministério das Finanças o Ofício nº 162/GGPCC/2019, em que reconfirmava os serviços prestados por cinco empresas do Grupo Chicoil, nomeadamente a Deolux Industrial & Comércio, a Bela Maskote Import-Export, o Supermercado Cesta Básica, o Grupo Serra do Moco e a Augulise. O então governador reiterou que os serviços foram prestados “no âmbito do programa de apoio às populações mais carenciadas”, conforme objecto dos contratos assinados com as referidas empresas.
Pedro Mutindi juntou à documentação probatória a “Confissão de Dívida e Acordo de Pagamento” e a “Acta de Reconciliação da Dívida”, por si emitida, a 13 de Maio de 2019, para cada uma das cinco empresas do Grupo Chicoil. Acresceu, ainda, a “Declaração de Reconhecimento da Dívida” por si passada, para cada uma das referidas empresas, a 18 de Julho de 2019.
Eis a investigação.
De Março a Setembro de 2016, “no âmbito do programa de apoio às famílias mais carenciadas”, o governo provincial do Kuando-Kubango comprou, às empresas do Grupo Chicoil, um total de 152 800 caixas de pastas de arquivo e 147 500 caixas de resmas de papel, no valor total de 884,41 milhões de kwanzas (equivalentes a 5,3 milhões de dólares) para distribuição entre os mais pobres.
O Kuando-Kubango, com pouco mais de meio milhão de habitantes, apresenta um dos índices de pobreza mais elevados do país, com sete em cada dez habitantes considerados pobres, segundo o Instituto Nacional de Estatística. Pois foi precisamente nesta província – mais concretamente no município do Dirico, um dos mais empobrecidos de Angola, com 90 por cento da população classificada pelo INE como extremamente pobre – que a empresa Augulise Comercial, Construção Civil e Comércio Lda., justifica ter entregado 32 600 caixas de pastas de arquivo e 32 100 caixas de resmas de papel, no valor total de 191,42 milhões de kwanzas, conforme a factura nº 013/2016 emitida pela empresa a 7 de Maio de 2016.
Segundo dados actualizados da administração municipal, o Dirico tem pouco mais de 15 mil habitantes, 90 por cento dos quais são classificados como extremamente pobres pelo INE. Para esta mesma localidade, a mesma factura das pastas de arquivo e resmas de papel sugere foram entregues 22 500 carteiras escolares simples e mais 23 100 duplas. É um total de 45 600 carteiras, no valor de 655,4 milhões de kwanzas (quatro milhões de dólares na altura). Mas o Dirico apenas tem 48 salas de aulas para um total de 12 escolas e seis mil alunos em dois turnos. Mesmo que as carteiras tenham sido distribuídas entre todos os locais, isso daria três carteiras escolares por cada habitante, incluindo os bebés.
Tais aquisições fazem parte de um pacote de bens fornecidos pelas cinco empresas do Grupo Chicoil S.A., avaliado em mais de 35,5 mil milhões de kwanzas (equivalentes a 214,2 milhões de dólares). Das listas de bens alegados para os pobres constam chapas de zinco e plásticas, atados de fardos, cobertores, sacos de arroz e de fuba de milho, peixe seco, massa alimentar, sal, óleo, feijão, mais umas motoniveladoras, betoneiras industriais, placas vibradoras, britadeiras e, aparentemente, 50 mil sacos de cimento.
Qual comédia, as comunidades mais carenciadas da capital da província, o município do Menongue, também tiveram direito a 9500 secretárias, no valor total de 667,38 milhões de kwanzas (4 milhões de dólares). Essas populações beneficiaram ainda, alega-se, de 16 400 cadeiras pretas com rodas e sem rodas, no valor total de 680 milhões de kwanzas (4,1 milhões de dólares), de acordo com a factura nº 014/2016, emitida pela Augulise a 30 de Maio de 2016.
Construções, incluindo escola, no município do Menongue, onde as casas são maioritariamente feitas de adobe.
O contrato de fornecimento (076/GPCC/2016), celebrado entre o governo provincial do Kuando-Kubango e a Augulise, a 19 de Janeiro de 2016, estipulava como seu objecto o “fornecimento de bens e materiais diversos e de construção no âmbito do programa de apoio às famílias mais carenciadas”, no valor de 9,5 mil milhões de kwanzas. Este objecto serviu para todos os outros contratos com as empresas do Grupo Chicoil (e não só), os quais serão escalpelizados em próximas investigações.
A 13 de Agosto de 2017, o então governador Pedro Mutindi certificou a existência da dívida do Kuando-Kubango à Augulise, no valor de 10,4 mil milhões de kwanzas, através do ofício 200/GGPCC/2017, assim como de mais quatro empresas do Grupo Chicoil, entre outras.
A versão de Chimuco
Em sua defesa, o empresário Elias Piedoso Chimuco explica ao Maka Angola os serviços prestados pelas suas empresas. “Isso era na fase de reassentamento das populações das zonas controladas pela UNITA e era preciso fazer a sua reintegração social. Havia um programa gizado nessa perspectiva”, diz.
À questão do reassentamento de populações, 14 anos depois do fim da guerra, em 2012, Chimuco justifica: “Em 2016 ainda havia zonas cinzentas, como no Likua. Eram situações que ainda envolviam pessoas nómadas e temerosas [da paz].”
“Toda essa mercadoria foi fornecida à consignação. Não foi paga. Havia urgência porque se estava em período de campanha eleitoral [para as eleições de Agosto de 2017]. Foi o que ocorreu”, continua.
Sobre a entrega dos milhares de caixas de pastas de arquivo, de caixas de resmas de papel e carteiras escolares ao Dirico, Elias Piedoso Chimuco diz tratar-se de um erro. “É natural que tenha havido um lapso ou erro de digitalização, porque a venda foi feita para o governo provincial, não foi para o Dirico. O Dirico foi um lapso.”
De acordo com o dono do Grupo Chicoil, o processo de pagamento da dívida reclamada pelo seu grupo encontra-se neste momento sob a alçada da Inspecção-Geral da Administração do Estado (IGAE). “O IGAE já pediu o contraditório e toda a informação já foi prestada, mas até agora não fomos pagos. Fui falar com a direcção do IGAE. É assim que o processo ocorre nos dias de hoje.”
Chimuco refere que o processo da dívida ao Grupo Chicoil transitou do Ministério das Finanças para o Palácio Presidencial, “para o ministro de Estado da Coordenação Económica, Manuel Nunes Júnior, porque há orientações para se apoiarem os grandes grupos empresariais para que estes apoiem as pequenas empresas”.
“O meu grupo também deve ser apoiado pelos investimentos que já fez no país”, remata.
Fonte do governo provincial do Kuando-Kubango, que prefere falar sob anonimato, reage com interjeições às facturas de que o Maka Angola tomou conhecimento: “Pastas de arquivo e resmas de papel para as populações mais carenciadas? Oh, isso até dá graça!”, ri o membro do governo provincial. “Nada, nada disso condiz com a verdade”, assevera.
De acordo com o nosso interlocutor, as administrações municipais da província têm, cada uma, cerca de dez computadores e há muito que se debatem com dificuldades básicas, como a provisão de tinteiros para impressão de documentos. Por conta disso, “os municípios têm representações na capital da província para suprirem as dificuldades de acesso a impressoras, tinteiros e até de mobilidade”, continua. Mais informa que tais municípios nem sequer têm bibliotecas: “Então, qual seria a utilidade de tanto papel e pastas de arquivo?”
Sobre os milhares de secretárias e cadeiras de rodas e sem rodas, o alto funcionário do governo provincial responde: “Nada! Eu sou filho desta terra. Com todo esse material teríamos condições de trabalho para pôr todas as administrações municipais a funcionarem. Nunca vi um pobre aqui a receber uma cadeira de rodas. Isso não existe. É tudo adulterado.”
Para o representante do governo provincial, até a aquisição de 50 mil sacos de cimento é uma invenção. “O gabinete de comunicação divulga todas as principais matérias do governo provincial. Teria sido uma grande notícia a distribuição de cimento aos pobres. Nada disso aconteceu”, enfatiza.
“Só o ex-governador Mutindi e o Grupo Chicoil sabem como justificar essa dívida e essas aquisições que até dão graça”, remata a fonte. Esse mesmo Pedro Mutindi, actual membro do Bureau Político do MPLA, já foi alvo de denúncias no Maka Angola pelos seus arrepiantes e toscos esquemas de pilhagem de fundos do Hospital Geral do Kuando-Kubango, envolvendo a sua filha Odalya Mukwatchala Mutindi e o seu motorista Francisco Lopes Watalala com facturas fictícias. Este último emitia até facturas de fornecimento de ovos em metros cúbicos.
Das várias investigações feitas por este portal, não há evidências de que o Grupo Chicoil tenha realizado a importação das quantidades industriais referenciadas nas facturas, como papel e pastas de arquivo, que não são produzidas a nível local. Muito menos há qualquer testemunha, no Kuando-Kubango que tenha informação sobre a chegada de tais bens, seu armazenamento e distribuição.
O esquema da dívida pública
A facturação, alegadamente fictícia, de dívida pública revela um padrão de comportamento empresarial de várias figuras conhecidas e associadas a altos dirigentes do MPLA. Trata-se da lei do menor esforço na pilhagem dos cofres públicos. Saem prejudicados a justiça económica e o bem-estar dos cidadãos.
Como nota o jurista Rui Verde, “o funcionário público que usa o dinheiro público para fins privados pratica o crime de abuso de confiança e peculato; o cidadão privado, o crime de burla. Certamente, haverá também tráfico de influências e os habituais crimes fiscais, além do branqueamento de capitais.”
A existência de indícios fortes de fraude deveria levar o Ministério das Finanças a requerer a intervenção da Procuradoria-Geral da República. É dever funcional de qualquer agente do Estado apresentar denúncia criminal sempre que tenha suspeitas relevantes de cometimento de um crime.