O Berbequim Continua Lá no Hospital

Um dos maiores problemas com que Angola de momento se debate, para lá das crises de estômago (fome) e da absoluta incerteza sobre o amanhã, é a normalização da insensibilidade humana.
Há quase um mês, denunciámos o uso de um berbequim de construção civil no Hospital Geral do Moxico (HGM), para a realização de cirurgias ortopédicas. Ora, o berbequim continua lá, no Departamento de Ortopedia do HGM.
Na matéria por nós publicada, tivemos o cuidado de levantar a questão sem revelar tudo. Julgámos, e mal, que o Governo Provincial e o Ministério da Saúde tratariam logo de arranjar uma verdadeira broca ortopédica para corrigir a situação e de obrigar a direcção do hospital a prestar contas.
Alguém imagina ser operado que um ente querido seja operado – no osso – com um berbequim de furar paredes, madeira ou metal?
Coube à Rádio Nacional de Angola (RNA), enquanto órgão estatal, fazer uma manchete que desmentia a nossa matéria, com Manuel Yaza Macano a vociferar contra quem alegou ser a fonte do Maka Angola: um médico da “oposição”. Acusou o médico do HGM de ter decidido “juntar-se a um grupo de activistas, entre eles o Rafael Marques e alguns funcionários descontentes, por causa da organização e rigorosidade, para insurgir-se contra a direcção do hospital, apresentando comportamentos de descrédito, pirraça, ultraje, baixeza, e denegrir a imagem da boa governação”.
Por sua vez, em vez de reagirem, o Ministério da Saúde e o Governo Provincial do Moxico optaram pelo silêncio.
Os leitores podem consultar directamente no website da Hitachi, a fabricante japonesa do berbequim usado no hospital (modelo Hitachi DN10DSA), e notar as suas especificações.
Trata-se de um berbequim leve, com pouco mais de um quilo. Segundo um especialista em construção civil, “o berbequim é demasiado rápido para a perfuração de um osso e não tem selector de velocidade. Por isso causa queimaduras no osso”. “As rotações só podem ser controladas com o pressionar do gatilho, com pouca ou muita força, o que não garante precisão adequada a uma cirurgia”, explica.
Esse berbequim, como está escrito na maleta da própria máquina, entrou ao serviço do Hospital Geral do Moxico a 7 de Maio de 2019, tendo sido adquirido pelo director-geral da referida unidade, Manuel Yaza Macano.
Antes disso, no HGM era prática corrente realizar cirurgias ortopédicas com um berbequim Bosch DDB181-02, também de construção civil, até que este se avariou. Mesmo não sendo hoje em dia utilizado, este instrumento encontra-se no Departamento de Ortopedia. Para que não restem dúvidas, publicamos aqui as fotos de ambos os instrumentos.


Estamos em 2020, a poucos meses de celebrarmos 45 anos de independência, de soberania nacional. Ainda convivemos com situações hediondas como o uso de um berbequim de construção civil para perfurar ossos humanos no principal hospital da maior província de Angola. O Moxico, com 223 mil quilómetros quadrados, tem uma extensão territorial superior à de muitos países. É duas vezes maior do que Cuba e Portugal. É seis vezes maior do que a Guiné-Bissau, um dos países mais pobres do mundo, e não temos conhecimento de que nesse país se use um berbequim de construção civil nalgum hospital por falta de recursos, corrupção ou negligência.
Estamos a falar de um hospital geral que o governador Gonçalves Muandumba considera como sendo “um dos melhores do mundo”.
Para que serve então o slogan do MPLA, no poder há 45 anos, “corrigir o que está mal, melhorar o que está bem”?
Contactámos a directora nacional dos Hospitais (Ministério da Saúde), Jovita Cachequele, para saber quais as diligências que o órgão da tutela está a tomar. A directora manifestou total desconhecimento do assunto, que é do domínio público. Partilhámos com ela as fotografias dos berbequins e toda a informação relevante, para obtermos uma resposta oficial sobre o caso, o que ainda não aconteceu.
Um reputado médico angolano considera que o uso do berbequim de construção civil para cirurgias a seres humanos “é simplesmente um atentado à saúde pública. Fere a ética e a deontologia profissional e, consequentemente, é um crime. Não tem outro nome, esse acto execrável”, desabafa.
Para o médico, é imperativo questionar o papel fiscalizador da Inspecção-Geral do Ministério da Saúde, assim como da Ordem dos Médicos.
Em termos comparativos, temos o caso do médico Adriano Manuel, que foi suspenso, a 3 de Agosto passado, pela direcção-geral do Hospital Pediátrico de Luanda. O pediatra denunciou publicamente a morte de 19 crianças em menos de 24 horas, por falta de atendimento às vítimas. Ao Novo Jornal, o director dessa unidade hospitalar, Francisco Nunes, afirmou que o pediatra quebrou o sigilo profissional e feriu os “princípios de ética e deontologia médica”.
Essa parece ser a narrativa dominante na administração pública em Angola: punir a verdade e o bem e proteger a mentira e a maldade. Vale mais o segredo, para protecção das irresponsabilidades cometidas pelo poder institucional na prestação de um serviço público, do que a vida das pessoas, dos cidadãos angolanos, dos nossos filhos, do futuro deste país. É o que o académico Paulo Faria apelida de protecção das “ilhas dos tiranetes” que formam o arquipélago da função pública em Angola.
Manuel Yaza Macano tem a protecção de alguém para conservar o lugar de director-geral do HGM e garantir que a luta pelo respeito da pessoa humana continue a ser um sonho, ou apenas um “ganho intangível”, como diria o embaixador Luvualu.
Cada vez mais se nota que os incorrigíveis que pululam pelo aparelho de Estado, como Manuel Yaza Macano, são os mais protegidos e os que mais estragos e descrédito trazem à ordem de mudança do presidente João Lourenço. Esta é a maior contradição dos tempos actuais. Quanto mais o presidente fala em mudanças, mais se notam os actos de sabotagem por parte de detentores de cargos públicos.
Aqueles que tentam corrigir o que está mal, como o médico pediatra Adriano Manuel, são sancionados pelo cinismo dos “donos” das ilhas que formam a administração pública. O berbequim continua lá no hospital, e a situação permanece. Como de costume, mantém-se o que está mal.
Falso problema se levanta no HGM com o uso do berbequim de contrucao civil.
Monsieur Marques
Je me permets de m’adresser à vous qui connaissez parfaitement la situation sanitaire en Angola après avoir lu cet article et un autre que vous avez écrit dans le Courrier international. Une de vos compatriotes, Fernanda, en France depuis 3 ans avec le statut d’étranger malade vient de se voir refuser le renouvellement de son autorisation au prétexte qu’elle peut se faire soigner en Angola. elle a subi 2 opérations orthopédiques à l’hôpital à bordeaux, a toujours beaucoup de difficultés à se déplacer, a besoin encore de soins. Elle n’a pas les moyens de payer une clinique privée en Angola. Son avocat a fait appel de la décision et il faut pour cela ajouter des éléments à sa demande, tels que des attestations que le système de santé en Angola ne peut pas lui permettre d’y être soignée correctement vu l’état des hôpitaux comme vous ledécrivez ainsi que les tarifs pratiqués dans les cliniques privées. Je vous serai très reconnaissante de bien vouloir apporter votre témoignage, cette dame est désespérée, voit ses espoirs de guérisons anéhantis. Merci infiniment. N anette PEYRI. Croix Rouge Française