Lamaçal: Queixa-Crime contra Magistrados Angolanos e Portugueses

Acaba de dar entrada na Procuradoria-Geral da República portuguesa uma participação criminal, assinada pelo antigo embaixador angolano Adriano Teixeira Parreira, que poderá levar à descoberta das mais graves e perversas relações entre alguns altos dirigentes do Ministério Público português, advogados portugueses e membros da elite cleptocrática angolana.

A peça que Teixeira Parreira remeteu à procuradora-geral da República (PGR) Lucília Gago é baseada na análise de várias mensagens de correio electrónico reveladas pelo Maka Angola no artigo “O Lamaçal entre as Justiças Angolana e Portuguesa”, publicado a 2 de Janeiro de 2019.

O centro dessas mensagens é o advogado português Paulo Amaral Blanco, que durante muitos anos foi o representante em Lisboa dos interesses dos dirigentes angolanos. Como é público, Amaral Blanco foi arguido no processo de corrupção que envolveu o procurador português Orlando Figueira, e o antigo vice-presidente da República de Angola, Manuel Vicente. Na primeira instância, Blanco foi condenado a uma pena de prisão suspensa de quatro anos e quatro meses, tendo recorrido para o Tribunal da Relação.

Embora, a queixa de Teixeira Parreira se foque em Amaral Blanco – que o queixoso considera ter um comportamento “claramente situado nos antípodas da justiça e da lei, indiciando uma acção sistemática e manifestamente dolosa, com efeitos altamente lesivos dos interesses do povo angolano, e também do povo português” –, a verdade é que o advogado português surge como o facilitador e intermediário de várias actuações sobre as quais o Embaixador lança suspeitas.

Teixeira Parreira começa por enquadrar as actividades em Angola do antigo PGR português Fernando Pinto Monteiro, levantando dúvidas acerca de uma sua visita acompanhada de larga comitiva a Luanda em 2010: “PINTO MONTEIRO descreveu de forma significativa e com um pormenor elucidativo, a receção, (…) ‘principesca’ concedida pelo então PR de Angola: ‘O Presidente da República de Angola, que eu nunca tinha visto, fez questão de me receber, com a assistência da dra. FRANCISCA VAN DUNEM e da dra. CÂNDIDA ALMEIDA, que não podiam falar (sic!), tratou-nos principescamente naqueles dias. As nossas relações eram ótimas.’”

O queixoso faz a ligação desta recepção principesca em Luanda – de facto, é estranho o presidente da República de Angola estar a receber o PGR doutro país – com uma mensagem electrónica de Paulo Amaral Blanco ao então PGR de Angola, João Maria de Sousa. Explica Parreira: “é no mínimo suspeito que o solícito PAULO BLANCO tenha proposto ao ex-procurador-geral de Angola, o general JOÃO MARIA, agendar um encontro com a então diretora do DCIAP, CÂNDIDA ALMEIDA, que estivera presente na receção do ex-presidente de Angola, para que o general procurador pudesse, finalmente, ‘agradecer-lhe a colaboração com a PGR de ANGOLA e oferecer-lhe um contentor de paracucas’.”

E acrescenta: “Esta também inusitada oferta à diretora do DCIAP, CÂNDIDA ALMEIDA, aquando das ‘principescas’ receções de JOSÉ EDUARDO DOS SANTOS e de JOÃO MARIA DE SOUSA, deixa sérias dúvidas quanto ao significado desta linguagem codificada, uma vez que é improvável dar crédito à interpretação literal que resulta do enunciado de PAULO BLANCO. Tanta quantidade de doce torna altamente improvável que assim tenha acontecido, sendo que é mais do que óbvio que “paracuca” é metáfora de qualquer coisa (o quê?) que deveria ser-lhe entregue (a troco de quê?), enquanto “contentor” só pode significar uma grande, muito grande, quantidade (de quê?) do que foi acordado ser entregue a CÂNDIDA ALMEIDA.”

Sobre estes factos inscritos nas mensagens de correio electrónico, enquadrados pelas notícias públicas da viagem principesca a Angola, Teixeira Parreira acredita que têm subjacentes acções ou omissões que impõem uma investigação aturada por parte das autoridades portuguesas às relações entre o poder angolano e membros do Ministério Público português, como Pinto Monteiro e Cândida Almeida, com Paulo Amaral Blanco a intermediar.

Um segundo grupo de factos compulsados por Teixeira Parreira liga-se às relações de Amaral Blanco com o procurador do DCIAP (Direcção Central de Investigação e Acção Penal do Ministério Público português, onde correm os principais processos), Paulo Gonçalves, com quem almoçava. Escreve Parreira: “Não deixa de ser surpreendente que, tendo um conhecimento profundo dos processos, o procurador emprestado ao DCIAP, PAULO GONÇALVES, tenha despachado em sentido contrário, sem critério nem rigor, durante os últimos tempos em que esteve no DCIAP. Assim aconteceu com o processo 41/13.8TELSB, Referência 1601479, de 09/07/2013, ou com o processo 356/14.8TELSB, Referência: 1653932, de 15/07/14, processos cujo esclarecimento ainda pende no DCIAP.”

E para sublinhar as suas suspeitas, Parreira pergunta: “O que leva ‘o advogado de Angola’ PAULO AMARAL BLANCO a garantir, com total convicção, (…) que o procurador do DCIAP PAULO GONÇALVES mandaria arquivar as provas apresentadas por RAFAEL MARQUES, e que esse procedimento seria feito de maneira que não fosse possível vir a sofrer de ‘quaisquer fragilidades técnicas’?” Reforçando a ideia, questiona: “Até aonde foi a promiscuidade de que o ‘O LAMAÇAL…’ apresenta provas irrefutáveis, entre o DCIAP/PAULO GONÇALVES/PGR PORTUGUESA/PAULO AMARAL BLANCO, e a PGR ANGOLANA/JOÃO MARIA DE SOUSA/MANUEL VICENTE/JOSÉ PEDRO MORAIS/MANUEL RABELAIS/HIGINO CARNEIRO?”

O embaixador conclui, taxativo: “O comportamento do Procurador PAULO GONÇALVES, deontologicamente censurável, deverá, a nosso ver, ser judicialmente questionado.”

O terceiro grupo de factos apontado por Adriano Teixeira Parreira refere-se às várias menções, nas referidas mensagens electrónicas, a honorários a ser pagos em Portugal. A suspeita que aponta é clara: “PAULO AMARAL BLANCO e o seu cúmplice JOÃO MARIA DE SOUSA (…) articularam a estratégia fraudulenta que a todos eles aproveitou, e que em tudo indicia tratar-se de crime organizado de grande amplitude em que se envolveram altas patentes e funcionários de ambos os Estados, de Angola e de Portugal, assim como milionários subornos, com o objetivo perverso de enriquecimento ilícito, sustentado por uma ganância desmedida e absolutamente censurável de que resta apurar ter ou não ter sido partilhada por outras eminentes figuras pardas, que continuam ainda dissimuladas debaixo da capa cúmplice das instituições judiciárias e outras. Só a investigação criminal poderá dar resposta, e esta quer-se urgente.”

O que esta queixa-crime deixa expresso é a suspeita que, em dado momento, determinadas pessoas pertencentes ao Ministério Público português (e não apenas Orlando Figueira) receberam vantagens indevidas variadas por parte de membros da elite angolana debaixo de investigação, com a intermediação do advogado Paulo Amaral Blanco, e que por esse motivo se esqueceram ou arquivaram variados processos-crime.

Não nos compete ser julgadores, mas também não podemos permitir que uma aparente significativa penetração promíscua de interesses privados angolanos tenha ocorrido no Ministério Público português e nada se faça. Competirá ao Ministério Público perceber onde estão os “ovos de serpente” que o seu próprio organismo incubou.

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