Banco Mais, Banco Postal e Muro de Lamentações

É extraordinária a forma aparentemente vigorosa como a sociedade angolana reage a alegadas injustiças ou ilegalidades contra figuras destacadas do regime que tantos males lhe causou.

A 2 de Janeiro de 2019, o Banco Nacional de Angola revogou a autorização de funcionamento ao Banco Mais e ao Banco Postal, o que originou fortes protestos. Estamos convictos de que a referida revogação tem justificação tanto jurídica como económica. Vejamos porquê.

A necessidade de capitais robustos e de reservas, que aumentou desde a crise financeira mundial de 2008, mantém-se na actual fase da economia nacional. É sabido que a economia está numa fase de contracção, com o kwanza a desvalorizar-se e uma inflação apreciável. Obviamente, face a estes fenómenos, era preciso aumentar o capital dos bancos para garantir a confiança e a solidez.

Um dos grandes propulsores da miséria no país tem sido precisamente o sistema bancário. Dominados por governantes, seus filhos e comparsas, os bancos permitem-lhes aceder às reservas internacionais líquidas de Angola e servem de veículo para a transferência desses fundos para o exterior. E assim se tem sistematicamente pilhado o país. Agora, o sector financeiro angolano tem de ser solidificado e reestruturado para fazer face aos desafios da economia.

 

A lei

É neste âmbito, cremos, que se enquadra o Aviso n.º 2/18 de 2 de Março emitido pelo Banco Nacional de Angola. Um Aviso do BNA é uma espécie de norma que os bancos centrais emitem com força geral e obrigatória para o seu sector.

Segundo esse Aviso, o valor mínimo do capital social integralmente realizado dos bancos passaria a ser de sete mil e quinhentos milhões de kwanzas (artigo 3.º, n.º 1 do Aviso), estabelecendo-se a necessidade de cumprimento imperativo dos Fundos Próprios Regulamentares (FPR) e do Rácio de Solvabilidade Regulamentar (RSR), determinados pelo Aviso n.º 2/16, de 15 de Julho (artigo 3.º, n.º 2). A imposição do reforço dos capitais era necessária para aumentar a confiança no sistema financeiro.

O mesmo normativo impunha às instituições que não tivessem possibilidade de cumprir esses requisitos o dever de procurar alternativas, como a fusão ou a venda a outrem (artigo 4.º). Finalmente, o artigo 5.º do mesmo Aviso dava o prazo até 31 de Dezembro para proceder ao referido aumento de capital e regularização dos FPR, devendo anteriormente, em 120 dias após a publicação do Aviso, apresentar um plano de acção sobre o que pretendiam fazer.

É importante esclarecer os conteúdos deste Aviso, para que se perceba que a decisão, tomada pelo BNA, de revogar as autorizações não surgiu do nada. Note-se, ainda, que ninguém contestou o Aviso e que os bancos receberam antecipadamente as regras e os limites precisos.

Passado o prazo dado pelo Aviso, o BNA fez o exigido por lei. Nos termos do artigo 15.º, c) da Lei n.º 12/15, de 17 de Junho-Lei de Base das Instituições Financeiras (LBIF), os bancos devem ter o capital social não inferior ao mínimo legal, que é estabelecido por Aviso do BNA (artigo 16.º, n.º 1 da LBIF). Não sendo cumprido esse requisito, o BNA pode revogar a autorização de funcionamento, nos termos do artigo 29.º da LBIF. Neste caso, nos termos das alíneas b) e f).

Refira-se que o Banco Mais, S.A. dispunha de um capital social de 4,9 mil milhões de kwanzas e fundos próprios regulamentares de 1,2 mil milhões de kwanzas, abaixo do novo mínimo regulamentar, isto é, abaixo de 7,5 mil milhões de kwanzas. Já o Banco Postal detinha um capital social de 13,6 mil milhões de kwanzas, mas os fundos próprios regulamentares situavam-se nos 4,2 mil milhões, abaixo do mínimo regulamentar de RSR e FPR (cfr. Aviso 2/16, de 15 de Junho para as várias fórmulas de cálculo).

Consequentemente, do ponto de vista legal, o BNA utilizou os devidos instrumentos, dando aos bancos oportunidade e tempo para se adaptarem. Não sendo possível essa adequação, os bancos deveriam considerar a fusão e venda, apresentando um plano de acção. No final deste processo, o BNA fez o que lhe competia face ao incumprimento das regras.

Entre os lamentadores de serviço, surgiu a teoria segunda a qual a lei determinaria que, antes da revogação, o BNA aplicasse multas e seguisse um procedimento mais lento (artigos 135.º, n.º 1 e 151.º b) da LBIF). Não têm razão, apesar da sofisticação dos seus argumentos.

Os artigos que o BNA aplicou (15.º e 29.º) referem-se às chamadas condições estruturais de um banco: a base essencial para o banco funcionar. E existem para que o BNA os aplique sempre que estejam em causa elementos estruturais da entidade financeira.

Note-se que o BNA concedeu aos bancos 120 dias para apresentarem um plano de acção e nove meses para adoptarem as medidas necessárias ao aumento e reforço dos capitais – portanto, houve uma dilação considerável. Não tem portanto sentido defender que agora, sim, se deveria iniciar um prazo de actuação, a prolongar-se ad eternum.

O BNA actuou dentro dos poderes legais de que dispunha, que obviamente são muito vastos e discricionários.

 

Economia e impacto sistémico

Do ponto de vista económico, numa fase em que se quer arrancar com a economia e em que entra em vigor um acordo com o FMI, o BNA tem de dar sinais aos mercados e aos agentes económicos.

Por um lado, tem de dar o sinal de que está a introduzir reformas e a adoptar práticas seguras e concorrenciais do sistema financeiro. Os empréstimos amiguistas e a politização da banca não mais podem ser tolerados.

Por outro lado, deve dar o sinal inequívoco de que as leis são cumpridas por todos.

Revogar as autorizações é uma medida profiláctica, que assinala um novo sentido de rigor e confiança no sistema financeiro angolano.

Do ponto de vista sistémico, i.e., da globalidade das instituições financeiras, os bancos em causa não afectavam a estabilidade do sector. Na verdade, o Banco Mais conta com apenas 1.466 clientes, que representam cerca de 0,01% do total de clientes do sector bancário. O Banco Postal era maior, detendo cerca de 130.922 clientes, que representavam cerca de 1,9%.

O importante, para evitar abalos sistémicos, era salvaguardar os depósitos, o que parece ter sido assegurado. Por intervenção da Procuradoria-Geral da República, os clientes destes bancos podem levantar os fundos depositados ou transferi-los para outros bancos. Este dado é fulcral para garantir a manutenção da confiança no sistema financeiro.

Um outro aspecto a que deve ser dada especial atenção é a protecção dos trabalhadores que ficarão no desemprego. O governo deve criar um mecanismo especial para apoiar estes e outros trabalhadores da banca.

 

A política

Debrucemo-nos agora sobre a vertente política a que a criação destes bancos esteve ligada. Quer o Banco Mais, quer o Banco Postal são fruto da política nepotista que vigorou no regime de José Eduardo dos Santos: cada um deles pertencia a filhos diferentes do anterior presidente.

O Banco Mais tinha como accionista principal a Mais Financial Services S.A., com 74,52 por cento. Já conhecemos esta empresa da famosa “Burla dos 500 milhões”, descrita abundantemente nas páginas do Maka Angola. Trata-se da empresa responsável pela transferência, considerada ilegal pelo Ministério Público angolano, de 500 milhões de dólares para Londres e que levou à acusação criminal contra José Filomeno dos Santos (Zenú) e o ex-governador do BNA, Valter Filipe. O presidente do Conselho de Administração da Mais Financial Services, Jorge Gaudens Pontes Sebastião, amigo e parceiro de Zenú, é também acusado no mesmo processo.

Destaca-se ainda como accionista, com 5,72%, Manuel da Cruz Neto, actualmente deputado do MPLA e presidente da 6.ª Comissão da Assembleia Nacional (Saúde, Educação, Ensino Superior, Ciências e Tecnologia). Antes, Neto serviu como secretário-geral do presidente da República (2013-2016) e ministro e chefe da Casa Civil do Presidente da República (2016-2017). O mesmo Manuel da Cruz Neto aparece também envolvido no processo que corre em Espanha devido à corrupção para a construção do Mercado de Luanda, alegando-se que foi subornado com caixas de bolachas cheias de notas.

Por sua vez, o Banco Postal tem como accionista principal a EGM Capital, S.A., com 65,4%, além de várias empresas públicas, como os Correios e a ENSA.

A questão essencial é que a EGM pertence a Danilo dos Santos, o filho do presidente José Eduardo dos Santos que mais recentemente assomou à ribalta por motivos desprezíveis (a compra de um relógio / fotos de pin-ups de Hollywood em Cannes por 500 mil dólares).

Por consequência, os bancos cuja autorização de funcionamento foi revogada pertenciam a dois filhos do ex-presidente José Eduardo dos Santos, que obviamente são PEP (Pessoas Expostas Politicamente). Não era proibido autorizar bancos detidos por PEP, nem é por essa razão que se revogam as licenças. Todavia, fruto do acordo recente com o FMI, está em preparação uma lei que visa o reconhecimento do carácter específico destas pessoas e o seu enquadramento jurídico, que implicará um cuidado acrescido em relação a quem é dono de um banco.

A verdade é que as instituições financeiras, no caso se pertencerem a PEP, podem tornar-se actividades de alto risco, sujeitas a vigilância acrescida no sistema financeiro internacional e encontrando muitos mais obstáculos para funcionar.

Obviamente, recai nos ombros do BNA a reverificação da idoneidade dos proprietários dos bancos e o exercício de persuasão moral para levar ao afastamento de PEP (filhos de presidentes, ministros, etc) da propriedade dos bancos, promovendo a venda e a fusão dos bancos.

Espera-se que a actuação sobre o Banco Postal e o Banco Mais tenha sido o início de um movimento mais vasto de reestruturação accionista e financeira da banca angolana, tornando-a sólida, transparente e capaz de operar no mercado internacional. Isso implicará um maior escrutínio ao Banco Sol, detido maioritariamente pelo MPLA, ao Banco Angolano de Investimentos (BAI), e também ao Banco Kwanza Invest (BKI).

Na verdade, não são apenas, nem sobretudo, o Banco Postal e o Banco Mais que merecem uma atenção acrescida do BNA. Tem de existir uma intervenção mais intensa para reformar o sistema financeiro e torná-lo saudável, salvaguardando sempre os depósitos e os trabalhadores.

Nas próximas semanas, daremos novos contributos para seguir este caminho fundamental, publicando várias investigações.

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