A Monumental Burla do Filho de José Eduardo dos Santos

José Filomeno dos Santos “Zenú” arquitectou uma burla de um bilião e meio de dólares (1.5 mil milhões) junto do Banco Nacional de Angola. O caso, sob investigação judicial, poderá ser determinante para o aumento da pressão contra o seu pai, José Eduardo dos Santos, que foi quem autorizou o esquema enquanto presidente da República. De resto, a sua presidência no MPLA está a ser abertamente contestada por outros dirigentes, que exigem um congresso extraordinário em Junho próximo.

Para além dessa burla presidencial, vozes se levantam agora sobre a gestão, há cerca de cinco anos, de sete biliões de dólares das Reservas Internacionais Líquidas (RIL) do BNA, a cargo de José Filomeno dos Santos e do seu parceiro Jean-Claude Bastos de Morais, através da Quantum Global. Não há prestação de contas sobre a aplicação deste montante pela dupla, para além de a mesma ter desbaratado os cinco biliões do Fundo Soberano de Angola.

A corda rebenta do lado mais fraco

A 14 de Março, a Direcção Nacional de Investigação e Acção Penal (DNIAP) da PGR constituiu arguido o ex-governador do Banco Nacional de Angola, Valter Filipe, por ter transferido 500 milhões de dólares para a conta de uma empresa dormente (sem qualquer actividade), a Perfectbit Limited, no Reino Unido. Esse valor representava um terço do valor total que o então presidente José Eduardo dos Santos autorizara para ser transferido.

A Perfectbit Limited é uma empresa com activos de 790 dólares e liquidez de 140 dólares, conforme documentos pesquisados pelo Maka Angola no Reino Unido. Portanto, é uma empresa de fachada. Mas como é que essa empresa se torna beneficiária da transferência?

Mais Financial fraude

O Maka Angola revela, em exclusivo, os detalhes da operação, com base em documentos oficiais disponibilizados online e dados recolhidos a partir de Londres. Em Junho de 2017, José Eduardo dos Santos chamou o ministro das Finanças e o governador do Banco Nacional de Angola à sede do MPLA.

Numa sala privada, o então presidente da República, José Eduardo dos Santos, entregou um dossiê a cada um dos convocados. Pediu-lhes para lerem ali mesmo, e perguntou-lhes se tinham compreendido o conteúdo. Tratava-se de uma proposta internacional para garantir a concessão de créditos a Angola que poderiam chegar aos 30 biliões (30 mil milhões) de dólares.

Com a anuência dos dois convocados à leitura do documento, chamou o portador da proposta à sala: o seu filho José Filomeno dos Santos, em representação da sua empresa, Mais Financial Services, e de uma parceira sua baseada em Londres, a Resource Conversion.

José Eduardo dos Santos ordenou ao ministro e ao governador que acompanhassem o seu filho nessa mesma noite a Londres, num avião fretado, para iniciarem as negociações com os proponentes. Acompanhava José Filomeno dos Santos o seu amigo de infância, parceiro de negócios e presidente do Conselho de Administração da Mais Financial Services, Jorge Gaudens Pontes Sebastião. Esses indivíduos tinham o apoio jurídico, para o esquema, do advogado angolano e professor universitário Teodoro Bastos de Almeida.

A Mais Financial Services, de Zenú, propôs a angariação de 30 biliões de dólares no mercado financeiro internacional. Esse montante seria aplicado num Fundo de Investimento Estratégico do Estado (FIE), destinado a apoiar a diversificação da economia. O proponente organizaria também “a disponibilização de divisas equivalentes a 300 milhões de dólares semanais” para o BNA, assim como o refinanciamento (compra) da dívida externa do Estado.

Como contrapartida, o Banco Nacional de Angola depositaria, antecipadamente à obtenção do financiamento, uma garantia de um bilião e meio de dólares ao consórcio Mais Financial Services e Resource Conversion.

A Resource Conversion é uma empresa britânica com activos avaliados em 12.8 milhões de dólares, pertencente a Hugo Anthonie Folke Godfried Reinier Onderwater. Mais conhecido como Hugo Onderwater, esse cidadão britânico apresentava-se como o líder da contraparte do BNA nas negociações em Londres.

A 27 de Junho de 2017, o presidente do Conselho de Administração da Mais Financial Services, Jorge Gaudens Pontes Sebastião, escreveu ao governador do Banco Nacional de Angola.

Na correspondência, a Mais Financial Services exigiu a assinatura de um contrato de prestação de serviços com o BNA. Referiu que o sindicato bancário montado para financiar o país se recusava a proceder com base apenas num memorando de entendimento. O tal sindicato, segundo a correspondência, era constituído pelos bancos Bankinter (Espanha), BNP Paribas (França), Deutsche Bank (Alemanha), HSBC (Grã-Bretanha), ICBC – Banco Internacional e Comercial da China, e Sumitomo (Japão).

Mas a verdade é que um tal sindicato bancário existia apenas na criatividade fraudulenta da Mais Financial Services.

Um financeiro internacional explica: “Geralmente, os Estados, através dos Ministérios das Finanças, quando contratam consórcios para aquisição de financiamento para os seus países, mandatam sempre um banco internacional de grande reputação para montar e liderar o sindicato bancário.”

Para o caso de Angola, o financeiro sob anonimato indica a prática da Sonangol, que regular e directamente contratava o Standard Chartered Bank para organizar sindicatos bancários para financiamento das suas operações e do Estado angolano.

Adiante, Jorge Gaudens Pontes Sebastião, sob batuta de Zenú, propunha a venda de um estudo financeiro ao BNA. “O referido estudo deve ser da titularidade do BNA no momento em que iniciar o diálogo com o sindicato bancário.”

José Filomeno dos Santos “Zenú”.

De forma confusa, Jorge Sebastião sugeria que “neste momento a elaboração do estudo ainda não foi formalmente contratada, estando, portanto, o mesmo sob titularidade da Mais Financial Services”.

“Sem um estudo que substancie a capacidade do BNA e as medidas necessárias para preservação da moeda nacional e definição das políticas monetária, financeira e cambial apropriadas, o sindicado bancário não tem bases para abordar a implementação das operações em questão”, asseverava o sócio de Zenú.

Com o ar mais sério do mundo, Jorge Sebastião informou o BNA de que os fundos angariados teriam de ser geridos por uma empresa “com gestão altamente especializada”. Para o efeito, impunha a contratação de mais uma empresa fictícia criada pelo seu amigo e patrão José Filomeno dos Santos, a Mais Financial Engeneering (assim mesmo, mal escrita em inglês, já que a forma correcta seria Engineering), que interviria então junto dos bancos credores e do Banco Central Europeu.

Sim, chefe!

Conforme dados consultados pelo Maka Angola, em princípios de Julho, José Eduardo dos Santos ordenou que o Banco Nacional de Angola “insistisse nos esforços” que conduziriam ao sucesso da proposta apresentada pelo seu filho e parceiros.

Todavia, o “olho grande” de Zenú e seus parceiros não se ficava pelo bilião e meio de dólares de garantia que receberiam do BNA. O grupo de Zenú cobrou 16.2 milhões de euros ao BNA, como retribuição pela consultoria técnico-financeira, para literalmente assaltar a instituição. O BNA pagou, à partida, 8.1 milhões de euros.

Nessa altura, os proponentes indicavam o consórcio bancário como sendo constituído pelo HSBC UK, Barclays, JP Morgan e Royal Bank of Scotland.

“Como o estado angolano contrata duas empresas-fantasma, uma angolana e outra inglesa, para uma operação dessa natureza? Nunca vi coisa igual. Do ponto de vista financeiro, é um roubo, um assalto”, denuncia o financeiro.

Segundo esta mesma fonte, “os bancos centrais não fazem contratos e acordos com companhias gestoras de fundos. Os bancos centrais controlam a política monetária do país, cedendo e absorvendo liquidez. Também compram dívida soberana de países com bom rating. Mesmo os bancos onde depositam os dinheiros, para gestão da sua liquidez, têm de ser bancos de reputação máxima, por causa do risco”.

Roubo ou não, a 7 de Agosto, através do Ofício N/N.º 277/Gov/30/17, o então governador do BNA, Valter Filipe, informou José Eduardo dos Santos da sua deslocação a Londres, e fez o ponto de situação das negociações a que daria seguimento.

Informou também que os membros do sindicato bancário e do consórcio criado pelo seu filho visitariam Angola entre 14 e 21 de Agosto, com vista à assinatura do protocolo com o BNA, ao lançamento do FIE e para uma audiência de cortesia com José Eduardo dos Santos.

Com efeito, “face ao exposto, solicitamos a Vossa Excelência a devida autorização para que possamos assinar o Asset Allocation & Management Agreement [O Protocolo], cujo conteúdo anexamos à presente informação”.

De forma expedita, a 10 de Agosto de 2017, menos de duas semanas antes das eleições, José Eduardo dos Santos determinou, no mesmo documento: “Autorizo”. E assinou por baixo.

Bué de massa!

Apesar da ordem presidencial, conforme investigação do Maka Angola, Valter Filipe vacilou na transferência integral do bilião e meio de dólares, e avançou com o depósito de apenas um terço do valor, 500 milhões de dólares.

Nesse mesmo dia em que o BNA assinou o acordo com o consórcio Mais Financial Services e Resource Conversion, este assumiu-se como uma nova entidade: a MFS and Resource Partnership Project Ltd.

O pagamento foi efectuado no dia 18 de Agosto, uma semana após José Eduardo dos Santos ter autorizado a operação, e cinco dias antes das eleições.

No entanto, o dinheiro foi parar à conta de uma terceira entidade, a Perfectbit, que tem activos de 780 dólares, aberta no banco HSBC de Londres. O director da Perfectbit, o brasileiro Samuel Barbosa da Cunha, de 49 anos, foi instrumental na montagem do esquema a partir de Londres, tendo sido imediatamente detido pelas autoridades locais tão logo se descobriu a burla, passando a ser o fiduciário da conta (trustee).

O financeiro internacional consultado pelo Maka Angola indica que a intervenção da Perfectbit como receptora do dinheiro serviria para cativar os fundos. “A Perfectbit não tinha contrato com o BNA, logo só a Mais Financial Services poderiam recorrer a esses fundos, com liberdade de usá-los como bem lhes aprouvesse.”

Como prova da sua capacidade, a empresa de Zenú, Valter Pontes e cúmplices apresentou ao BNA uma garantia bancária de 2.5 biliões de dólares, alegadamente emitida pelo Crédit Suisse de Londres. Inicialmente, o Maka Angola reportou que o dinheiro teria sido depositado nesse banco. Fontes em Londres revelam que essa garantia era simplesmente falsa.

“Nunca houve um sindicato bancário para apoiar essa operação. Claramente, foi apenas um esquema para se roubar dinheiro ao BNA”, reforça o financeiro internacional.

“Não há registo de um banco central de um país contratar gestores de activos, muito menos nacionais, para servirem de intermediários na aplicação das suas disponibilidades de liquidez”, explica. Para o financeiro, “mais ridículo ainda é sociedades gestoras servirem de intermediárias para montarem sindicatos bancários para emissão de dívida pública soberana e/ou financiamentos a um Estado”.

Justiça parcial

Um advogado contactado pelo Maka Angola afirma que os actos descritos e atribuídos a José Filomeno dos Santos e Jorge Gaudens Pontes Sebastião se coadunam com vários tipos criminais. “Isto é, correspondem ao cometimento de vários crimes, como burla (art.º 450.º e 451.º do CP) e falsificação (art.º 219 do CP)”, explica.

Recorrendo à Lei sobre a Criminalização das Infracções Subjacentes ao Branqueamento de Capitais (Lei n.º 3/14), o advogado refere que, nos actos ora revelados, “se encontram indiciados os crimes de associação criminosa (art.º 8.º) e tráfico de influências (art.º 41.º). Em resumo, e no mínimo, os factos reportados têm relevância criminal relativamente aos crimes de associação criminosa, burla, tráfico de influências e falsificação. Atendendo aos vários requisitos cautelares que uma investigação deste tipo impõe, justifica-se o decretamento de prisão preventiva”.

Sobre o papel decisivo de José Eduardo dos Santos para o cometimento da burla, o advogado considera que “os factos indiciam a pertença à mesma associação criminosa pela lei referida, e os crimes de peculato e participação económica em negócio, assim qualificados pela sua condição de Titular do Poder Executivo na época”.

Ainda de acordo com este especialista, “as imunidades enquanto presidente da República de José Eduardo dos Santos já não se aplicam, mas sim enquanto ex-presidente. E estas remetem para as imunidades dos deputados”.

Desse modo, “pode haver um processo criminal contra JES. Havendo despacho de pronúncia, cabe à Assembleia Nacional votar a retirada de imunidade a José Eduardo dos Santos”.

Para além da pressão à volta de José Eduardo dos Santos, o caso revela também a protecção conferida pela Procuradoria-Geral da República a certas figuras do poder que se encontram a braços com a justiça.

A nível institucional, tem sido garantida alguma protecção ao filho de José Eduardo dos Santos, José Filomeno dos Santos “Zenú”, grande arquitecto da burla. Como exemplo da protecção, o antigo administrador da AGT, Nickolas Neto, está detido há seis meses por ter recebido uma comissão equivalente a pouco mais de 40 mil dólares; ora, no caso de um saque comprovado de meio bilião de dólares, não há ninguém detido.

Ademais, a comunicação social estatal anunciou apenas a constituição de Valter Filipe como arguido, tendo omitido o caso de José Filomeno dos Santos e seu cúmplice na fraude, Jorge Gaudens Pontes Sebastião, que, nessa altura, já deveriam estar encarcerados, caso a Procuradoria-Geral da República agisse de facto com imparcialidade.

É evidente a contradição entre o estado da justiça e os discursos políticos do presidente João Lourenço contra a corrupção.

João Lourenço condicionou as relações entre Angola e Portugal à transferência do julgamento por corrupção de Manuel Vicente para o país, como um acto de soberania. “O que é que é preciso fazer para que as relações voltem aos bons níveis do passado recente? Apenas um gesto. Esse gesto é remeter o processo para Angola, é satisfazer o pedido de Angola para as autoridades judiciais angolanas”, afirmava João Lourenço, em Janeiro passado.

Já o PGR, general Hélder Pitta Grós, reconheceu que Angola não dispõe de quadros capacitados para investigar a Sonangol e o Fundo Soberano, e apelou à partilha de esforços no domínio da justiça. Se não há capacidade para investigar as suspeitas que recaem sobre os filhos de José Eduardo dos Santos, por eventuais crimes cometidos por Isabel dos Santos, na Sonangol, e por José Filomeno dos Santos, no Fundo Soberano, como poderá haver recursos para julgar Manuel Vicente em Angola?

O governo deve incentivar a colaboração estrangeira na punição dos seus corruptos, uma vez que é para terras de fora, seja Portugal ou a Grã-Bretanha, que vai o dinheiro roubado dos cofres de Angola.

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