O Comunicado de Isabel dos Santos
Depois do ciclone lançado por Carlos Saturnino, actual presidente do Conselho de Administração da Sonangol, Isabel dos Santos reagiu com um anticiclone. Durante o fim-de-semana, Isabel desdobrou-se em contra-ataques: emitiu um comunicado, deu entrevistas, informou a imprensa da sua posição.
Tudo isto tem, desde logo, um aspecto positivo: discutem-se em público as causas da decadência da Sonangol, permitindo que a população fique informada. Talvez esteja a ser criado um espaço público de disputa nos termos defendidos por Habermas, assegurando que no futuro nunca mais seja possível saquear impunemente uma empresa da dimensão da Sonangol.
A guerra de Isabel dos Santos contra Manuel Vicente e aliados
A posição de Isabel dos Santos tem dois aspectos fundamentais de ordem político-jurídica.
Em primeiro lugar, assume verdadeiramente um confronto fratricida dentro da liderança do regime contra Manuel Vicente e seus seguidores, entre os quais se incluem Carlos Saturnino e o actual presidente da República, João Lourenço. Recorde-se que, durante o consulado de Vicente na Sonangol, Saturnino ocupou a posição-chave de director de negociações (2002 a 2012) e que João Lourenço é o protector actual de Manuel Vicente.
Na narrativa de Isabel dos Santos, existem duas culturas na Sonangol: a criada e mantida por Manuel Vicente (presidente do conselho de administração entre 1999 e 2012), a que chama de “antiga escola”; e a nova cultura que ela tentou implementar.
Segundo Isabel dos Santos, a gestão de Manuel Vicente, ou da “antiga escola”, caracterizou-se por uma “cultura de irresponsabilidade e desonestidade que afundaram a Sonangol em primeiro lugar”, em que vários “aproveitaram e construíram fortunas ilegítimas à custa da Sonangol”. E Isabel vai mais longe, afirmando que agora “estão de retorno os interesses das pessoas que enriqueceram de bilhões à custa da Sonangol. São estes, que hoje fomentam e agitam a opinião publica, de forma a poderem retomar os seus velhos hábitos”.
A posição de Isabel dos Santos é muito clara: Manuel Vicente e os gestores que o rodearam saquearam a Sonangol e levaram-na à falência, estando agora de volta para saquearem de novo a empresa.
Por sua vez, a gestão de Isabel trouxe grande valor acrescentado à Sonangol, “tendo sido identificadas mais de 400 iniciativas de redução de custos (programa Sonalight) e mais de 50 iniciativas de aumento de receitas (programa Sonaplus), as quais conjuntamente permitiram melhorar os resultados da Sonangol em USD 2.2 bi”. Mais, declara Isabel que “o resultado da minha gestão exercida até 15 de Novembro de 2017 resultou num aumentou de lucros da Sonangol em 177%, e atingiu 224$Mi, e a dívida foi reduzida em 50%”.
Este é o cenário maniqueísta traçado por Isabel: “a antiga escola” de bandidos e saqueadores liderada por Manuel Vicente, e a nova escola que adoptou regras modernas de gestão, liderada por ela, que estava a colocar a Sonangol no caminho certo. Os maus (Vicente, Saturnino, etc.) contra os bons (Isabel dos Santos).
O ataque de Isabel ao pai e a falta de factos que suportem as acusações
Esta narrativa de Isabel gera uma perplexidade e comete um erro repetidamente.
A perplexidade é que esta “antiga escola”, tão vilipendiada por Isabel, serviu durante a Presidência do seu pai, José Eduardo dos Santos, foi nomeada por ele, superintendida por ele e acarinhada por ele, que acabou por nomear Manuel Vicente ministro e depois seu parceiro como vice-presidente da República. Assim, os epítetos que Isabel aplica a Vicente e seus associados são, em última instância, críticas ferozes ao seu pai e à liderança que este imprimiu ao país.
O erro de Isabel dos Santos é o mesmo que cometeu quando despediu Carlos Saturnino da Presidência da Comissão Executiva da Sonangol Pesquisa e Produção, em 20 de Dezembro de 2016. Na altura, justificou a decisão acusando essa presidência de má gestão e desvios financeiros, mas não concretizou as acusações. Deixou uma nuvem sobre a idoneidade de Saturnino, mas não fez o que se exigia. Se Saturnino tinha prejudicado a Sonangol, no mínimo a empresa devia ter enunciado os factos, como Saturnino agora fez, e apresentado uma queixa-crime para apuramento de responsabilidades. Isabel apenas afirmou, despediu e nada mais. Tudo vago.
Agora volta a usar as mesmas vacuidades: “contratos leoninos”, “fortunas ilegítimas”, enriquecimento à custa da Sonangol. Fica a questão (o Maka Angola sabe a resposta e já escreveu múltiplas vezes sobre o tema desde há muitos anos, ver por exemplo aqui e aqui): a quem se refere Isabel dos Santos? Quem fez contratos leoninos com a Sonangol? Quem tem fortunas ilegítimas à custa da Sonangol? Isabel dos Santos não pode fazer estas afirmações sem as concretizar, sem apresentar provas, apenas desespero. Já outra pessoa do círculo presidencial anterior, Maria Luísa Abrantes, quando os seus filhos estavam debaixo de fogo, veio também acusar antigos associados de JES, como Kopelipa e Dino do Nascimento, das maiores falcatruas. Apesar de, mais corajosamente do que Isabel dos Santos, dizer alguns nomes, Maria Luísa acabou por não concretizar factos.
Estas pessoas – como Isabel dos Santos ou Maria Luísa Abrantes – que agora se indignam com o saque levado a cabo no tempo em que o pai e marido José Eduardo dos Santos estava no poder, deviam ter agido – como o fez Rafael Marques –, colocando processos-crime, denunciando crimes, com factos e pessoas concretas e correndo com isso variados riscos. Virem agora denunciar meras vacuidades é uma brincadeira.
Na sua Cantata da Paz, a poeta portuguesa Sofia de Mello Breyner escreveu:
“Vemos, ouvimos e lemos / Não podemos ignorar”.
Todos sabemos do que fala Isabel dos Santos, do que falou Maria Luísa Abrantes, e não podemos ficar indiferentes. Não somos indiferentes. Mas só com factos, com concretizações iremos a algum lado. Caso contrário, nada muda.
E a verdade é que a narrativa de Isabel dos Santos não tem correspondência com a realidade, pelo menos na sua atitude de repúdio da “antiga escola” e da administração de Manuel Vicente na Sonangol. Uma das empresas beneficiárias de contratos de consultoria na Sonangol, desde pelo menos 2010, é a YouCall, Lda. Esta empresa é uma sociedade por quotas criada em 12 de Dezembro de 2008 e que tem como sócia maioritária, com 75%, a própria Isabel dos Santos. Consequentemente, pelos vistos, Isabel dos Santos foi uma das beneficiárias da gestão de Manuel Vicente. Também terá feito parte da “antiga escola”…
Devido a estas contradições, é tempo de confrontar, nos seus temas específicos, a resposta apresentada por Isabel dos Santos.
As respostas de Isabel dos Santos
Na sua refutação, Isabel começa por fundamentar a escolha de consultores com base numa acta em que estariam presentes várias autoridades do Estado, o ministro das Finanças, o ministro dos Petróleos, o ministro da Casa Civil, que deliberaram fazer um contrato de consultoria para a “Reestruturação do Sector dos Petróleos” com a empresa Wise Consulting. Afirma de seguida Isabel dos Santos que tal contrato foi cedido à Matter e que tal cedência teve autorização da presidência do conselho de administração (PCA) da Sonangol, assim pretendendo justificar os milhões transferidos para estas consultoras.
Comecemos pelos aspectos formais. Do texto de Isabel dos Santos não resulta que tenha sido seguida a Lei dos Contratos Públicos em vigor na época – Lei n.º 20/10, de 7 de Setembro – nem que tenha sido seguido qualquer processo transparente de contratação. Além disso, a cessão da posição contratual também se afigura ilegal. Se o ministro das Finanças assina um contrato, supostamente é ele que tem de autorizar a cedência da posição contratual, e não a PCA da Sonangol. Portanto, a não ser que exista algum elemento que desconheçamos, o contrato com a Wise e a cedência da posição da Wise para a Matter não têm validade legal.
Contudo, a questão é mais densa. A empresa Wise Consulting terá sido criada a 21 e 23 de Junho de 2010, em Malta. Existem duas empresas chamadas Wise: a Wise Intelligence Solutions Holding Limited e a sua subsidiária Wise Intelligence Solutions Limited. Ambas as empresas têm o mesmo endereço nominal na 171, Old Bakery Street, Valleta VLT 1455. Isabel dos Santos detém 99,9 por cento das acções de cada uma delas, enquanto o seu marido Sindika Dokolo simbolicamente subscreve o restante capital social. No mesmo endereço, estão registadas várias outras empresas de Isabel dos Santos, incluindo a Victoria Holdings, que estabeleceu parceria com a Sodiam.
O PCA da Sonangol que autoriza a transferência do contrato da empresa Wise para a Matter é Isabel dos Santos. Se isto não é conflito de interesses, o que é? Por sua vez, a Matter a tem o mesmo endereço que a Wise, e Mário Leite da Silva – braço-direito de Isabel dos Santos e dirigente de várias das suas empresas – surge ligado à Matter.
Ademais, como explicou Carlos Saturnino, quem aparece como directora da Matter é uma consultora da empresa YouCall, Lda. que prestava vários serviços na Sonangol, da qual, como já referimos, Isabel dos Santos detém 75% do capital social.
Assim, todos os elementos formais indicam que Isabel, directa ou indirectamente, controlava a Wise e a Matter. Portanto, a partir do momento em que assume a presidência da Sonangol, está a fazer negócios consigo mesma e em claro conflito de interesses.
Em termos materiais, a questão relevante é saber que trabalhos concretos a Wise ou a Matter fizeram para justificar os milhões que receberam.
O essencial da fraude ou ilegalidade das consultorias das empresas de Isabel dos Santos à Sonangol não resulta de terem ou não sido aprovadas pelo Governo; resultará, sim, de saber se o Governo seguiu a lei para a sua aprovação e se o trabalho posteriormente desenvolvido – relatório, documentos, planos, etc. – justifica ou não os pagamentos efectuados. É que a presente administração da Sonangol afirma não existir nada. Não há qualquer trabalho que justifique os milhões que foram pagos.
De relevante, na resposta de Isabel dos Santos existe, ainda, a questão da transferência dos 38 milhões de dólares. A antiga PCA afirma que tal transferência existiu, mas foi ordenada anteriormente à tomada de posse do novo conselho de administração. Da explicação de Isabel, entende-se que a transferência foi feita depois da exoneração dela, mas antes da tomada de posse de Saturnino. A ser assim, a relevância criminal da transferência enquanto acto único não existe. Apenas existirá relevância criminal se esta transferência tiver sido feita sem justificação, dentro de um comportamento continuado de fraude em que se emitem facturas sem suporte substantivo. Portanto, o importante é apurar todos os factos envolvendo a diversa facturação dos consultores mencionados por Saturnino, e não esta factura em especial. No entanto, de acordo com os critérios de boa gestão, o pagamentos de facturas em montantes avultados depois de se ter sido exonerado não é de todo adequado.
Há uma questão que tem de se colocar para perceber o verdadeiro significado desta factura: quantas outras facturas de valor elevado foram pagas neste ínterim que ocorreu entre a exoneração do antigo PCA e a nomeação do novo? É que, se não tiver havido outros pagamentos, fica a suspeita que este pagamento obedeceu a desideratos não consonantes com o interesse da empresa, cabendo à PGR analisar o contexto e enquadramento.
Há outros temas de interesse neste comunicado, entre os quais a participação na GALP, que serão objecto de outro texto.
Em suma, a defesa de Isabel e a sua narrativa pecam por, mais uma vez, lançarem acusações sem concretizar, têm o elemento surreal de constituir um forte ataque ao mandato presidencial do pai e, em termos técnicos, não adiantam, apenas reforçam a necessidade de a PGR investigar a fundo o que se passou na Sonangol.