Julgamentos Sumários em Cacuaco
Um rumor sobre uma suposta distribuição de terrenos, pela administração municipal de Cacuaco, na zona agrícola conhecida como Kilómetro 30, em Luanda, resultou em quase cem detenções e julgamentos sumários, hoje, pelo Tribunal Municipal de Cacuaco.
Segundo apurou Maka Angola no local, mais de 40 réus, entre os quais 22 mulheres, foram condenados, individualmente, a três meses com pena suspensa, transformados em multa de 49 000 kwanzas.
A notícia da suposta distribuição de terrenos provocou a deslocação de inúmeras pessoas ao local. Mas, sem nenhuma razão aparente, os efectivos da Polícia Nacional presentes no local começaram a prender pessoas de forma aleatória.
Roque Augusto, uma das testemunhas, explicou que a sua família se dirigiu ao local e reclamou um terreno, na zona supostamente sob distribuição. Segundo o cidadão, a sua família nem sequer tocou no terreno. “No sábado passado, um grande efectivo da Polícia Nacional apareceu no local, mandou chamar a população para transmitir uma mensagem importante e, de repente, começaram a escolher pessoas, de forma arbitrária, sem dizerem mais nada e a prenderem-nas”, disse Roque Augusto.
Entre os escolhidos, constam dois irmãos seus, Cândido e Carlos Joaquim, cuja detenção presenciou.
Grande parte dos detidos passou o fim-de-semana nas celas da Direcção Provincial de Investigação Criminal de Luanda (DPIC), anexa ao Comando Provincial de Luanda da Polícia Nacional (PN), enquanto outros foram levados ao Comando Municipal de Cacuaco. No período da manhã de segunda-feira, todos os detidos foram transferidos para o Tribunal Municipal de Cacuaco para julgamento sumário.
Mais de 300 pessoas, entre familiares, amigos e curiosos, juntaram-se frente ao tribunal para acompanhar o caso, enquanto a PN colocou no local, até ao fim do dia, um dispositivo de cerca de 70 efectivos e 12 viaturas.
Fernanda Jacinto chorava desconsolada à porta do tribunal, com a bebé Anastácia Paulino ao colo. A mãe da criança, a sua irmã Anabela Faustino, encontrava-se entre os detidos. De acordo com o seu testemunho, desde sábado “a polícia permitiu apenas que a mãe amamentasse a criança uma vez e depois devolveu-a. Eu não sei mais o que fazer, a bebé está a chorar muito. Ajudem-me por favor. Como podem separar uma bebé de uma mãe?”, lamentava a tia. Anabela Faustino foi encarcerada no comando de Cacuaco.
“A minha irmã vive em casa de renda e, quando ouviu que estavam a distribuir terrenos, ela deixou a criança comigo e foi também a correr, no sábado, para ver se conseguia um terreno. Ela chegou lá e, sem fazer nada, sem ver terreno nenhum, prenderam-na”, explicou Fernanda Jacinto.
Por sua vez, Rosa Francisco Rafael vociferava ante a detenção da sua filha, Maria Francisco Rafael, de 26 anos. “Ela ia ao mercado, que existe na mesma área onde houve o problema. Ela ia fazer compras e prenderam a miúda na estrada sem ela ter feito nada.”
A mãe informou que “a polícia disse à minha filha para subir para o carro e quando ela perguntou porquê, disseram-lhe apenas que ‘você vai explicar no comando’. Prenderam a minha filha à toa”.
Já Augusta de Jesus chorava pela detenção do marido, João António Manuel. “O meu marido estava de passagem, na estrada, não tinha nada a ver com o assunto. Prenderam-no. Até hoje não permitem que a família fale com ele”, disse.
Como outras mulheres e familiares, Augusta de Jesus levava consigo um farnel para alimentar o marido. A cidadã referiu que “a comida está toda aqui na rua, o tribunal e a polícia não permitiram aos presos receber alimentos e também não lhes deram de comer”.
“A minha irmã, Luzia Pedro, foi condenada. O tribunal disse que nós tínhamos de ter o dinheiro em mãos para nos entregar a multa e passarem a soltura. Nós não tínhamos o dinheiro na hora e levaram-na para a cadeia”, informou Madalena Pedro.
Madalena contou que a sua irmã se encontrava a capinar quando foi detida. “Até crianças de 16 anos eles prenderam. Temos aqui muitos bebés, e a polícia aqui em Cacuaco só permite que os bebés entrem para serem amamentados e depois devolvem às famílias. Como isso é possível?”, questiona-se.
Os familiares reclamaram pelo facto de, para além dos impedimentos impostos às visitas, os réus não terem direito a contactar advogados. A constituição consagra o “direito à informação e consultas jurídicas, ao patrocínio judiciário e a fazer-se acompanhar por advogado perante qualquer autoridade” (Art. 29.º, 2.º). A constituição também salvaguarda os direitos dos mais pobres ao acesso à justiça.
Em processo pouco transparente, alguns familiares com posses financeiras entregaram dinheiro a funcionários do tribunal e agentes policiais para a soltura dos seus entes queridos, que eram, assim, retirados da sala de julgamento. Estes eram aconselhados a regressar de imediato às suas casas, sem contacto com familiares de outros detidos ou estranhos.
Já passava das 20H00 quando os condenados, sob forte cordão policial, foram transportados para cumprimento de prisão. As autoridades judiciais e policiais não comunicaram aos familiares, impedidos de assistir ao julgamento e que se haviam aglomerado junto ao tribunal, qual o local para onde foram conduzidos os condenados.
Vários familiares decidiram pernoitar junto ao tribunal, em vigília. Os julgamentos sumários prosseguem amanhã.
Não foi possível obter a reacção da Polícia Nacional ou do tribunal sobre os acontecimentos.