Supremo: Joel Descalça Simba

Aurélio Simba é juiz conselheiro do Tribunal Supremo e tem 63 anos. Ficou famoso em 2023, por ter sido um dos noves juízes a subscreverem uma deliberação segundo a qual os próprios se recusavam a distribuir e julgar processos, devido aos comportamentos que consideravam inadequados de Joel Leonardo, presidente do mesmo tribunal. A verdade é que a greve dos juízes superiores não produziu efeito e a vida continuou.

Agora, por ter um pé infectado que o incapacita temporariamente de trabalhar, Aurélio Simba foi jubilado por uma deliberação do Conselho Superior da Magistratura Judicial (CSMJ). Isto quer dizer que foi afastado do tribunal muito antes da data oficial de jubilação, que deveria acontecer apenas aos 70 anos. Além disso, a jubilação não terá acontecido a seu pedido, mas contrariamente à sua vontade e sem que o próprio tivesse qualquer conhecimento prévio do procedimento.

A ser de facto assim, tratou-se de um saneamento, obviamente ilegal e inconstitucional.

A história de Aurélio Simba consta formalmente de uma queixa-crime apresentada contra a pessoa do presidente do CSMJ, Joel Leonardo. Na verdade, este é já o segundo juiz conselheiro a apresentar uma queixa criminal contra Joel Leonardo, depois do falecido Agostinho dos Santos, que foi afastado sem cumprimento dos procedimentos legais e de forma aparentemente arbitrária e discricionária.

A queixa-crime de Aurélio Simba contra Joel Leonardo data de 10 de Fevereiro de 2025 e está endereçada ao procurador-geral da República, Hélder Fernando Pitta Grós. Nela, o juiz conselheiro Simba acusa Joel Leonardo de ter cometido o crime de abuso de poder (revisto e punível nos termos do art.º 374.º do Código Penal) e o crime de denegação de justiça (art.º 348.º do Código Penal).

Juiz conselheiro Aurélio Simba

O essencial dos factos alegados por Aurélio Simba é o seguinte:

No dia 27 de Agosto de 2024, surpreendentemente e sem aviso prévio, o gabinete de Aurélio Simba no Tribunal Supremo foi notificado de uma resolução da 4.ª Sessão Extraordinária do Plenário do Conselho Superior da Magistratura Judicial, mediante o ofício n.º 1949/035/GSE/CSMJ/2024, na qual se deliberava a sua jubilação com efeitos imediatos, sob pretexto de incapacidade.

Segundo o juiz Simba, essa resolução foi adoptada sem o seu conhecimento prévio, nem a sua participação em qualquer processo administrativo que visasse aferir a tal suposta e imaginária incapacidade. Torna-se óbvio que tal será uma manifesta violação das normas fundamentais de um Estado de direito, e de variadas normas do direito angolano.

Adicionalmente, além de desrespeitar o direito de audição prévia, a referida resolução do CSMJ foi deliberada sem qualquer suporte médico idóneo conhecido, enfatiza Aurélio Simba.

Portanto, a resolução parece ter sido um mecanismo para afastar um juiz do Tribunal Supremo, de forma discricionária e brutal, como se de uma hierarquia militar em tempo de guerra se tratasse.

A base da resolução será o facto de, desde há um tempo a esta parte, o conselheiro Simba ter sido acometido de uma enfermidade (infecção) que atingiu a planta do pé direito, afectando-lhe a capacidade para se calçar e locomover convenientemente, razão pela qual ficou temporariamente impedido de exercer as suas funções.

É uma enfermidade que está em tratamento – tanto quanto se sabe, temporária, – e que de nenhum modo implica a cessação das suas funções, muito menos sem qualquer processo prévio. Mesmo que houvesse argumentos válidos que justificassem a jubilação, esta teria de ser precedida do devido processo de audição e contraditório, e devidamente fundamentada.

Face ao que considerou ser uma profunda injustiça, o conselheiro reclamou junto do CSMJ e intentou várias acções judiciais na Câmara do Contencioso Administrativo do Tribunal Supremo, um requerimento de Providência Cautelar de Suspensão da Eficácia do Acto Administrativo e a respectiva acção principal de Impugnação do Acto Administrativo, visando a declaração da sua nulidade.Contudo, segundo o juiz conselheiro, desde que esses documentos deram entrada, designadamente a reclamação dirigida ao Plenário do CSMJ e as acções judiciais dirigidas a Câmara do Contencioso Administrativo, inexplicavelmente e ao arrepio da lei, nada foi atendido. Nada se passa, nem os efeitos automáticos da lei são accionados. Tudo fica parado.

É por tudo isto que o conselheiro Simba considera que está perante uma situação de abuso de poder e denegação de justiça, terminando a sua peça citando o Presidente da República, João Manuel Gonçalves Lourenço, que num dos seus discursos, no dia 26 de Setembro de 2017, proferiu a célebre frase “Ninguém é suficientemente rico ou poderoso que não possa ser punido e ninguém é pobre demais que não possa ser protegido.”

Em palavras simples, Aurélio Simba acusa o seu colega Joel Leonardo de usar a sua posição de autoridade de maneira inadequada, injusta, para ganho pessoal e para oprimir os outros, bem como de impedir que os tribunais exerçam sua função jurisdicional, negando a prestação do serviço judicial a quem o solicita. Por outras palavras, o conselheiro Simba está a afirmar que a justiça angolana não é administrada de forma justa ou eficiente, resultando em prejuízo para quem busca os seus direitos.

Estas alegações são graves. Não nos compete a nós valorá-las ou julgá-las, mas apenas dizer o óbvio. As alegações contra Joel Leonardo repetem-se. Não são uma campanha orientada por pessoas concretas ou invisíveis, pelo contrário, surgem de onde menos se espera, dos seus pares. E surgem todos os dias, não param, abundam, permanecem, acumulam-se.

A independência e a inamovibilidade dos juízes (salvo em casos previstos pela lei) são duas estruturas fundamentais do Estado de direito. Ao afastarem-se juízes por meros actos de vontade absoluta, está-se a destruir o Estado de direito, logo, a atentar contra a democracia. Se os juízes perceberem que podem ser afastados a qualquer momento por uma decisão arbitrária, então deixam de ser juízes e tornam-se meros funcionários obedientes. Este é um perigo real. Permitir o afastamento de juízes à toa é permitir a morte da democracia. Compete ao presidente da República, como garante da normalidade e do bom funcionamento das instituições (art.º 108.º, n.º 5 da CRA, que lhe dá poderes implícitos necessários para desempenhar adequadamente essas funções) intervir para acabar com esta situação que quotidianamente denigre o poder judicial em Angola e coloca em perigo qualquer evolução democrática. É isto e só isto.

Comentários