Discurso sobre o Estado de Saturação (Ficção)

Minhas Senhoras, meus Senhores,

Sou obrigado a escrever-vos. Se não me querem ouvir ou ler, digam-me. Rasgo o discurso e vou à praia.

Portanto, estou aqui para apresentar o meu relatório sobre o Estado de Saturação em que vivemos. Estamos todos saturados. Eu também estou e não vejo saída para vocês. Eu, por mim, não saio daqui. Estou muito bem, apesar de ter de vos aturar.

Começo por dizer que não me revejo no papel de vosso líder, muito menos no de vosso servidor. Sou a Ordem Superior. A vontade suprema que vos comanda. Mas a minha vontade não é a vosso favor.

Digo já. Não me identifico nem um pouco convosco. Houve momentos em que pensei usar os meus poderes – os divinos, os mágicos, os pessoais e os ditos constitucionais – para o vosso bem, mas a vossa ingratidão impede-me. A vossa origem desmotiva-me. Sou indiferente à vossa fome. A vossa orfandade política até dá pena. Por isso, adoptei-vos. Mas de nada adianta pensar em salvar-vos.

Só os meus importam, e os que se curvam diante da minha presença. Sou generoso para com a minha família, os meus amigos e os meus sócios. E estes também são generosos com os seus mais próximos. O círculo alarga-se o suficiente. E dentro do círculo ninguém passa fome. Todos os dias é uma festa. É farra que não acaba.

Como se vê, não sou má pessoa.

Permito que falem mal de mim, podem dizer que sou isto e que sou aquilo. Isso aborrece-me, mas não muda nada. Cada um no seu lugar. O meu é aqui. O vosso não é problema meu.

O meu poder é cósmico. Posso e mando. Não dependo de vocês e dos vossos boletins de cidadania, nem mesmo dos que me rodeiam. Não preciso de talentos, de grandes ideias e planos que dão muito trabalho. Só preciso ser eu e estar aqui neste lugar. A minha sorte é o vosso azar. É a lei da conformidade. Só preciso de um gato preto para vos afugentar. É o poder da superstição, o terror do medo. É a vossa tradição. A vossa independência.

Tudo aquilo em que mando, isso a que vocês chamam de riquezas naturais, de bens públicos, tudo isso é meu. Parto e reparto como bem entender. Estou farto de vocês e dos vossos queixumes pelas ruas da amargura, da vossa maledicência sem qualquer legitimidade. Até temos algo em comum, a maldade.

Quando me fartar de estar aqui, entregarei tudo isto por herança a quem eu quiser. Isto é meu, fruto de um orgasmo cósmico — quero dizer, de um organismo cósmico.

A vós, deixarei apenas um bilhetinho com uma só palavra: desdém. Caso não compreendam a mensagem, aconselho-vos a ouvir aquele rap do Phay Grand.

O meu estado de ânimo, hoje, não me permite fazer um discurso longo sobre o estado da nação, perdão, da saturação. Serei breve. A partir de agora apenas me dirijo a Deus e ao Diabo, a quem devo prestar contas.

Primeiro, a Deus. Ora, o Senhor espera-me lá em cima ou lá em baixo, para me pedir contas. Portanto, estou à vontade, porque estou aqui – nem em cima, nem em baixo. O Senhor bem pode esperar por mim e pelo meu relatório, cujo balanço é e será sempre bastante positivo. Aqui, sou um pequeno Deus. Repito. Mando e posso. Este é o meu paraíso. Depois deste, não haverá outro para mim. Apenas o pó da terra, que me cobrirá. Para vocês, pode ser o inferno.

Segundo, ao Diabo. Fruto dos nossos esforços exclusivos, todas estas pessoas beneficiam de um crédito bonificado de saturação, com uma taxa de juros de dois por cento.

No domínio da saúde, temos registado os maiores progressos no mundo. Registámos uma diminuição em mais de 60% de doenças infecto-contagiosas, como a esperança, a competência, o bom senso, a inovação.

Aumentámos em mais de 70% os níveis de frustração no seio dos jovens, que se perdem à procura de emprego, tentando elevar os seus conhecimentos. Como sabem, esta é uma alavanca importante para impulsionar a economia das seitas religiosas e os interesses obscuros que a vós servem com zelo e lealdade, oh meu Senhor D. Para o efeito, até conseguimos erradicar a praga da contestação. A solidariedade, outro mal social, havia sido eliminada há muito tempo. Mas, em 2017, a nossa própria inexperiência com discursos criou alguns focos de solidariedade que, com a prática, tratámos de extinguir.

Há pessoas, essas a que chamam desfavorecidas, que falam muito de liberdade e melhoria de condições de vida. São mal-educadas. Pois bem, criámos um ambiente em que todos quantos buscam essa ilusão podem encontrá-la onde quiserem. Menos aqui. Sempre lhes digo que podem ir e desaparecer, porque esta terra não lhes pertence. Nunca souberam amá-la, cultivá-la e lutar para compreender que estão no paraíso – o meu paraíso. Mesmo aqueles a quem esta terra sempre deu tudo, preferem ter as suas famílias e os seus bens lá fora. Então, qual é o valor desta terra? Agora, sou eu quem a dá. Porque é minha. Para não ser exaustivo, continuaremos amanhã, ou depois, com este monólogo, esta comédia trágica sem fim à vista.

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