Problemas de Lei: Eduarda Rodrigues, Manuel Vicente e Activistas

Três temas recentes no panorama jurídico angolano merecem alguma atenção e uma reflexão que vá além da mera notícia.

O primeiro tema é a exoneração de Eduarda Rodrigues do cargo de directora do Serviço Nacional de Recuperação de Activos (SENRA) da Procuradoria-Geral da República (PGR), por aparente quebra de confiança do procurador-geral Helder Pitta Gróz.

A questão que se vai colocar, e que já colocámos várias vezes no passado, é a do refluxo e das consequências legais nos processos em curso. Muito do trabalho da ex-directora do SENRA baseou-se num voluntarismo extremo que, mesmo se bem-intencionado, não tinha fundamento legal, designadamente no que toca aos “acordos” extrajudiciais de entrega de activos em troca de imunidade criminal. Nunca se conhecendo em detalhe esses acordos, também não foi possível perceber quais as razões para que umas pessoas fossem acusadas criminalmente, mesmo tendo entregado bens, e outras não.

Apenas em Agosto de 2021, a revisão constitucional do artigo 37.º da Constituição legitimou para o futuro esses acordos, o que foi concretizado pela Lei n.º 13/22, de 25 de Maio do ano seguinte (Regime Jurídico aplicável à Apropriação Pública), prevendo ainda assim a obrigatoriedade de uma série de formalismos legais. Não é difícil, portanto, pensar que todos os acordos realizados antes de Maio de 2022 serão ilegais, e que isso se vai agora reflectir nos processos criminais em curso. Quanto aos acordos posteriores, apenas serão válidos aqueles que tenham obedecido aos requisitos legais.

Ademais, tem-se conhecimento de que muitos daqueles que entregaram activos alegam que o fizeram debaixo de coacção de Eduarda Rodrigues. Obviamente que, em termos práticos, a saída de Eduarda facilita a prova dessa coacção, o que tem como consequência directa, nos termos do artigo 255.º e 256.º do Código Civil, a possível anulação do acto.

Eduarda Rodrigues, durante anos à frente do SENRA, demitida pelo PGR

Eduarda Rodrigues, durante anos à frente do SENRA, demitida pelo PGR

É muito provável que a exoneração de Eduarda Rodrigues abra as comportas para inúmeras anulações de recuperações de activos, devido às alegações de existência de coacção, isto é, de que quem entregou os activos o fez por receio de um mal de que tenha sido ilicitamente ameaçado com o fim de obter dele a declaração de entrega dos bens.

Não vale a pena escamotear. Há aqui um novo (que era velho) problema no combate à corrupção.

O caso de Manuel Vicente e do procurador português Figueira também merece reflexão adicional.

Orlando Figueira, antigo procurador da República portuguesa deu recentemente entrada numa prisão em Portugal para cumprir uma pena a que foi condenado por ter sido corrompido. Esta pena foi aplicada por um tribunal português no âmbito de um processo em que, inicialmente, Manuel Vicente também era acusado por corrupção activa. Segundo as autoridades portuguesas, Manuel Vicente corrompeu Orlando Figueira, para que este arquivasse os processos contra ele. Depois da intervenção do próprio presidente da República de Angola e de um requerimento da PGR angolana, os tribunais portugueses separaram os processos: aquele contra Figueira correu os seus termos em Portugal, culminando na sua condenação e prisão; o referente a Manuel Vicente foi remetido para Angola, ao abrigo de um acordo internacional entre os dois países. Esperava-se que a PGR de Angola avançasse com o processo contra Manuel Vicente. Isto passou-se em 2018.

A realidade foi diferente. Primeiro invocando uma imunidade duvidosa – uma vez que Manuel Vicente teria cometido os eventuais actos corruptos antes de ser vice-presidente da República e, por isso, não gozaria de qualquer imunidade – depois por motivos esotéricos, a verdade é que até hoje não saiu qualquer despacho da PGR em relação a Manuel Vicente; nem acusação, nem arquivamento, nem aplicação da Lei da Amnistia.

Consequentemente, Figueira (o corrompido) está preso, Manuel Vicente (o alegado corruptor, embora sem qualquer julgamento livre e justo) tem um estatuto incerto. Não se sabe o que é Vicente. Suspeito? Arguido? Inocente? Está auto-exilado? É fugitivo?

Orlando Figueira, detido por corrupção passiva; Manuel Vicente, nem sequer julgado por corrupção activa

A questão não é se Vicente é culpado ou inocente; a questão é que a um (Figueira) se aplicou a lei, ao passo que a outro (Vicente) se aplicou o nada. Na verdade, em relação a Vicente também há uma denegação dos direitos de personalidade – que estão salvaguardados pela Constituição angolana –, uma vez que foi transformado num não-ser.

Finalmente, o caso dos activistas Adolfo Campos, Gilson Moreira (conhecido como Tanaice Neutro), Hermenegildo Victor José (conhecido como Gildo das Ruas) e Abraão Pedro Santos (conhecido como O filho da revolução – Pensador), aos quais acrescento o jornalista Carlos Alberto.

Carlos Alberto, jornalista detido em Angola

O problema que aqui se coloca não é ao nível de processo legal, mas à medida da pena aplicada. Em regra, este tipo de crimes, ligados à honra ou à desobediência, só deveriam originar penas de prisão em casos extremos, que envolvam concurso criminal. As penas de prisão deveriam ser guardadas para casos realmente violadores da ordem jurídica, o que não é o caso.

Acredita-se que faria sentido o presidente da República usar os poderes que lhe são conferidos pelo artigo 119.º da CRA e indultar as penas destas cinco pessoas. O indulto seria uma boa forma de corrigir os excessos do sistema penal e de conciliar a sociedade com este sistema, permitindo uma flexibilidade e consensualização que são importantes neste momento em Angola.

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