Acórdão Zenú: o Fingimento do Tribunal Supremo

No passado dia 28 de Junho de 2024, com 11 votos a favor e 2 contra, com declaração de voto, o Tribunal Pleno de Recurso do Tribunal Supremo, através do acórdão de conformação n.º 135/20, manteve todas as condenações em relação aos arguidos do chamado “caso dos 500 milhões”: José Filomeno dos Santos, Valter Filipe, Jorge Sebastião e António Manuel.
Recorde-se que este acórdão do Tribunal Supremo surge na sequência do anterior acórdão do Tribunal Constitucional n.º 883/2024, que “declarou a inconstitucionalidade do acórdão recorrido, por violação dos princípios da legalidade, do contraditório, do julgamento justo e conforme e do direito à defesa”, referindo-se a anterior deliberação condenatória do mesmo Tribunal Supremo.
Isto é, não houve qualquer mudança na apreciação do Tribunal Supremo após a declaração de inconstitucionalidade proferida pelo Tribunal Constitucional.
Este acórdão do Tribunal Supremo faz lembrar os versos do poeta Fernando Pessoa, que viveu largos anos na África do Sul:
“[O Tribunal Supremo) é um fingidor
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.
E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
[o fingimento]”
O que temos nesta decisão do Tribunal Supremo é um fingimento. Efectivamente, do ponto de vista formal, o Tribunal parece respeitar a injunção do Tribunal Constitucional (cfr. pp. 23, 38 e 54 do acórdão de conformação n.º 135/20), ao aceitar a junção aos autos da Carta do antigo Presidente da República José Eduardo dos Santos e depois pesar o seu valor, concluindo que não tem valor nenhum e que, mesmo que tivesse, não existe dever de obediência em situações que impliquem a prática de um crime (cfr. p. 54).
Esta súmula de decisão levanta várias questões que não podem ser escamoteadas.
A primeira é a interpretação restritiva que o Tribunal Supremo faz da decisão do Tribunal Constitucional, ao considerar que a única implicação prática desta era a junção aos autos e a tomada em consideração da Carta do Presidente José Eduardo dos Santos.
Quando anteriormente discutimos este assunto nas colunas deste portal, questionámos “se, afinal, o que está mal é apenas a não consideração da carta de José Eduardo dos Santos ou se há algo mais. Neste aspecto, o Tribunal Constitucional não foi cuidadoso e deixa uma injunção indeterminada, que possivelmente necessitará de um pedido de aclaração”.
Ninguém pediu aclaração nenhuma, e o Tribunal Supremo optou por uma interpretação restritiva da injunção constitucional, limitando-a à Carta de José Eduardo dos Santos. Tínhamos dúvidas sobre esta interpretação e continuamos a ter.
O que parece é que o Tribunal Constitucional apresentava a não admissão da junção da Carta como um exemplo de violação dos princípios e não como a única violação. Relembre-se, por exemplo, o expendido na p. 21 em que os juízes do Tribunal Constitucional escrevem: “Da análise do conteúdo da decisão, objecto do recurso, se podem verificar a desconformidade constitucional de certos procedimentos tomados no decurso do processo, como é o caso da não admissibilidade de prova relevante (Carta do antigo Presidente da República de Angola).” Infere-se daqui que há uma pluralidade de desconformidades, das quais a Carta é um exemplo.
Neste sentido, a interpretação restritiva do Tribunal Supremo poderá não corresponder à intenção do Tribunal Constitucional e deverá ser objecto de recurso apropriado, nos tempos da lei processual.
Uma segunda questão é de bom senso e bom gosto, e reside na apreciação que o Tribunal Supremo faz da Carta do antigo Presidente da República. Viola as regras da experiência e do bom senso desconsiderar na sua totalidade uma Carta escrita pelo antigo Presidente da República, quer por considerá-la formalmente nula, quer porque ordens contrárias à lei não excluem qualquer ilicitude (cfr. P. 54 do acórdão do Tribunal Supremo).
O princípio da livre apreciação da prova, em conjugação com a injunção do Tribunal Constitucional, afasta a questão da nulidade formal da prova-Carta. Seria uma fraude judicial admitir-se uma prova tal como mandado pelo Tribunal Constitucional e depois dizer-se que a mesma é nula. Assim, a decisão sobre a Carta de José Eduardo dos Santos radica no facto de não se dever obedecer a ordens ilegais. Também já tínhamos escrito, em 2021, que “mesmo que se considere haver um dever dos arguidos no sentido de não cumprir ordens ilegítimas – dever bem vincado na jurisprudência internacional a partir da Segunda Guerra Mundial (1939-1945) e dos subsequentes julgamentos de Nuremberga, que condenaram os mais relevantes nazis, que se defenderam dizendo que estavam a cumprir ordens –, a verdade é que tem relevância para o caso concreto perceber o papel de JES nesta operação”.
Isto quer dizer que é evidente que há um dever de não obediência a ordens ilegais, mas é igualmente evidente que as circunstâncias, em termos de medição da ilicitude e da culpa, são muito diferentes quando se age sozinho, por impulso próprio, ou quando se age num contexto determinado por um Presidente da República, que em Angola tem poderes extensivos. Mesmo cometendo crime, aceitando a tese do Tribunal Supremo, a sua gravidade é inferior.
Ora, é este elementar bom senso que faltou aos juízes que, ao lerem a Carta, não consideraram o contexto delineado por José Eduardo dos Santos. E esta falta de atenção à diminuição da ilicitude e eventualmente da culpa dos arguidos indicia uma falta de isenção por parte dos Venerandos Conselheiros.
É óbvio que é muito diferente para a graduação de uma pena agir sem indicações presidenciais ou agir com indicações presidenciais. Ao não ter em conta este aspecto para uma nova graduação mais leniente da pena, a maioria dos juízes do Tribunal Supremo transmite uma imagem de parcialidade e desatenção ao caso concreto que descredibiliza a justiça, e abre o caminho a um recurso colocando, de acordo com as regras comuns da experiência, em causa a imparcialidade do Tribunal. Concluindo, nada fica resolvido com este acórdão, que levanta mais inquietações do que certezas. No fundo, é um fingimento, fingindo que não é fingimento o que deveras é.