A Guerra dos Generais e a Disfunção das Instituições

Distintos membros da classe dirigente do país têm usado, reiteradas vezes, os nomes de inexpressivos subordinados como testas-de-ferro na criação de empresas. O Maka Angola já denunciou alguns desses casos, mas é a primeira vez que expõe a esperteza de um inferior hierárquico que, por via da falsificação, utilizou o nome de um poderoso general para criar uma empresa que fizesse negócios com as Forças Armadas Angolanas.

E agora começou a guerra dos generais.

A 26 de Janeiro de 2019, a Direcção Nacional de Investigação e Acção Penal (DNIAP) informou o denunciante Fernando Vasquez Araújo de que Américo José Valente (na foto principal), arguido pela prática do crime de falsificação de documentos oficiais, havia sido amnistiado ao abrigo da Lei da Amnistia de 2016 (Lei n.º 11/16, de 12 de Agosto). Assim, era dado por extinto o procedimento criminal em curso e o processo seria arquivado. Ao denunciante Fernando Vasquez Araújo restaria o recurso aos tribunais cíveis, com vista a obter uma indemnização pelos eventuais danos causados.

À partida, estava-se perante mais uma de entre muitas comunicações administrativas da DNIAP aplicando a Lei da Amnistia, que fora aprovada no final do mandato de José Eduardo dos Santos.

No entanto, os nomes saltam à vista: Fernando Vasquez Araújo é general – engenheiro aeronáutico e ex-chefe da Direcção Principal de Armamento e Técnica das Forças Armadas Angolanas. Araújo apresentou queixa contra Américo José Valente, também general e, actualmente, secretário-executivo e de coordenação da segurança presidencial da Casa Militar do Presidente da República.

General Fernando Vasquez Araújo

General denuncia general

A participação criminal do general Araújo contra o tenente-general Valente, na altura chefe da Direcção Principal de Operações da Direcção Principal de Operações do Estado-Maior General das FAA, baseia-se no seguinte: em 2012, o general Araújo tomou conhecimento, através de um artigo do Maka Angola sobre a sua participação como sócio da empresa Trans Omnia Lda, acusada de prática de enriquecimento ilegal. O general Araújo estranhou o facto e tratou de averiguar. O seu nome constava em documentos oficiais como sócio da referida empresa, constituída a 26 de Dezembro de 2001, no 3.º Cartório Notarial da Comarca de Luanda, em acto firmado pela então notária-adjunta Maria Isabel Fernandes Tormenta dos Santos.

A empresa havia sido constituída pelos irmãos Safeca: Alcides, então secretário de Estado do Orçamento, Ministério das Finanças; Aristides, secretário de Estado das Telecomunicações; e Amílcar, director da UNITEL. Os três associaram-se ao então oficial superior da Força Aérea Nacional (FAN), coronel Américo José Valente, destacado no Posto de Comando do Estado-Maior General das FAA. Através da empresa familiar Grupo Omnia, os irmãos Safeca ficaram com 50 por cento da sociedade, ao passo que Américo José Valente ficou com a outra metade. Dada a sua “pequenez” em termos de influência, esse oficial terá aparentemente optado por blindar a empresa associando-a um general poderoso, com o qual não tinha qualquer relação pessoal ou de subordinação directa. Assim, o coronel Valente atribuiu 25 por cento da sua quota-parte ao então comandante do Comando Logístico e Administrativo da FAN, general Araújo, sem conhecimento deste.

Consciente de nunca ter feito parte de tal entidade, o general Araújo apresentou, ainda em 2012, queixa na Procuradoria-Geral da República (PGR) por falsificação de documentos. Ainda nesse ano, a PGR comunicou-lhe que o agente falsificador teria sido o tenente-general Américo Valente, que confessara a prática do crime.

AGT executa general denunciante

Contudo, aparentemente, nada foi feito de seguida. Em 2017, o general Araújo vê-se confrontado com referências no Jornal de Angola como sendo co-executado num processo fiscal da Administração Geral Tributária (AGT) por dívidas dessa Trans Omnia. Nessa altura, o general Araújo requereu junto do referido processo executivo – então sob a alçada de Anabela Vidinhas, actual juíza conselheira do Tribunal Supremo – a extinção do procedimento contra si, uma vez que tinha sido vítima de um crime e nada tinha a ver com o assunto. No entanto, a juíza Vidinhas exigiu ao general Araújo a entrega de documentação que comprovasse a sua falta de ligação à companhia. Cumpridas as formalidades, o general teve de andar entre a DNIAP e o tribunal até Julho de 2019, quando foi finalmente exonerado do processo.

Este caso é extraordinário porque, até à data, o Ministério da Justiça e dos Direitos Humanos, que controla os cartórios notariais, nada fez para alterar o pacto social ilegal da Trans Omnia. O nome do general Araújo permanece nos registos como sócio, sem nunca o ter sido. O Maka Angola sabe também que a Trans Omnia nunca pagou a dívida à AGT.

Nomeações erráticas e justiça moribunda

Portanto, um cidadão que nada tem que ver com uma situação vê-se, de repente, envolvido na maior das confusões jurídicas, gasta dinheiro para se defender, e no final nada acontece ao presumível responsável, que se torna, entretanto, uma das pessoas do círculo mais restrito da segurança do presidente da República.

Esta história, aqui contada muito sumariamente, levanta várias questões importantes.

A primeira é a da sindicância acerca das pessoas que são nomeadas para cargos políticos ou de confiança política. Temos vindo a assistir ao mais triste espectáculo na justiça, com dois presidentes de tribunais superiores, Joel Leonardo (Supremo) e Exalgina Gambôa (Contas) debaixo de forte suspeição pública. Verificamos agora que uma das mais recentes nomeações do presidente da República para a coordenação da sua segurança pessoal é um general que terá praticado um crime de falsificação de documentos autênticos. A prova consta de uma declaração oficial para o tribunal, assinada pelo procurador-geral adjunto da República e coordenador do DNIAP, João de Freitas Coelho, emitida em 13 de Junho de 2019. Sublinhe-se que o procedimento criminal contra Américo José Valente só foi extinto devido à Lei da Amnistia.

Não se contesta o valor legal da Lei da Amnistia, nem sequer os princípios da presunção de inocência e da reinserção social. Contudo, para cargos de especial sensibilidade e relevância pública parece-nos essencial aplicar critérios de idoneidade apertados às nomeações e exercer uma verificação segura desses critérios.

Apesar de a parte criminal do processo contra Américo José Valente ter sido arquivada, a parte cível continua em aberto. Portanto, o general Araújo pode ainda accionar um processo cível contra o outro general, o Valente, e pedir uma indemnização.

É normal ser autor ou réu em acções de indemnização, mas não deixa de ser confrangedor ver o secretário executivo e de Coordenação da Segurança Presidencial da Casa Militar do Presidente da República processado por um colega militar devido a prejuízos causados por falsificação.

É imperioso submeter as nomeações presidenciais a um maior e mais apertado controlo funcional. A contínua nomeação para cargos sensíveis de pessoas que são visadas pela justiça por condutas criminais é verdadeiramente inaceitável.

Um segundo aspecto prende-se com o procedimento processual. É incompreensível que a juíza Anabela Vidinhas não tenha suspenso um processo de cobrança de dívidas quando um dos visados denunciou a existência de um crime na origem da empresa. Teria sido bem mais fácil notificar oficiosamente a DNIAP, suspender o processo e obter esclarecimentos. Os juízes têm de ser os primeiros a garantir a celeridade processual. O caso dos generais prolongou-se por um período de sete anos, pelo menos entre 2012 e 2019, tendo havido uma confissão expressa perante o DNIAP. Como é possível tamanha lentidão? Esta mácula de deixar arrastar processos e procedimentos em nome de burocracias formais é uma das pesadas heranças do colonialismo jurídico português, de que os juízes angolanos não se libertam (para não falar das práticas de incompetência, da preguiça profissional e dos esquemas habituais). Há muitos esforços a desenvolver, seja na atenção minuciosa a todas as nomeações, seja na celeridade da justiça. Fundamentalmente, tem de se começar a adequar os discursos à realidade e a realidade aos discursos. De outro modo, Angola continuará a ser um país de brincadeira nas mãos de dirigentes para quem os cidadãos são meros peões de um jogo cujas vidas e futuro nada importam. 

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