A Falsa Demissão do Juiz do Supremo

A Justiça não pode ser capturada por nenhuma força, e só pode obedecer à Constituição e à lei.

O juiz do Tribunal Supremo Agostinho Santos não foi demitido, ao contrário do que está a ser anunciado pela comunicação social. O que houve, até ao momento, foi uma deliberação de demissão da Comissão Permanente do Conselho Superior da Magistratura Judicial (CSMJ) em primeira instância. No entanto, tal deliberação não é definitiva: para suspender a apregoada demissão, basta que entre um recurso para o Plenário do CSMJ. É precisamente isso que dispõe o artigo 104.º do Estatuto dos Magistrados Judiciais. Portanto, a notícia da demissão de Agostinho Santos é precipitada.

E é tanto mais precipitada quando nenhum colectivo de juízes, seja em tribunal, seja em corpo disciplinar, pode constitucionalmente deliberar que as supostas infracções cometidas pelo juiz Agostinho Santos têm como consequência a sua demissão.

O nosso argumento é muito simples, e apenas se refere ao Direito. Os factos imputados a Agostinho Santos não acarretam, em nenhuma circunstância, a pena de demissão. Vejamos porquê.

Segundo se entende da Nota de Acusação remetida ao juiz, os factos que lhe são imputados revestiriam a violação dos deveres de cortesia, urbanidade e sigilo impostos aos juízes, e dizem essencialmente respeito a uma contenda com o presidente do Tribunal Supremo acerca do concurso público para a designação do presidente da Comissão Nacional Eleitoral (CNE). A posição do juiz Agostinho Santos ficou expressa numa entrevista ao site Camunda News e em mais umas poucas declarações relativamente infelizes que proferiu.

Sublinhe-se que nenhum dos factos elencados diz respeito ao exercício de funções judiciais, nem o juiz foi condenado (aliás, nem sequer foi acusado) por nenhum crime, nem no exercício das funções, nem fora delas.

Ora, muito simplesmente, mesmo que se admitisse que o juiz “falou demais”, foi descortês para os seus colegas, ou não devia ter dado a entrevista, mesmo que se aceitassem esses factos como válidos, provados e instruídos dentro do prazo, nunca a sanção resultante poderia ser a demissão, devido à natureza soberana da função jurisdicional que o juiz exerce.

O juiz é titular de um órgão de soberania, nos termos do artigo 174.º da Constituição da República de Angola (CRA), e nessa qualidade é independente e inamovível (artigo 179.º da CRA). Isto quer dizer que apenas em situações muito graves pode um juiz, titular de um órgão de soberania, ser afastado. Um processo disciplinar a um juiz não tem a mesma natureza de um processo disciplinar a um trabalhador ou funcionário público. É um processo de natureza constitucional, pelo que o patamar de demissão tem de ser extremamente elevado.

Ora, é essa elevação de patamar exigida pela CRA que não se verifica de todo neste caso, havendo por isso uma aplicação desproporcionada da lei.

Apenas em casos-limite se pode demitir um juiz. A lei prevê uma escada sancionatória que vai da advertência à multa, passando pela suspensão, aposentação compulsiva e, no final, a demissão.

A demissão, repete-se, devido ao estatuto constitucional soberano do juiz, só pode ocorrer em casos manifestamente gravíssimos, e não naqueles que se verificam na presente situação.

Em concreto, consideramos que só pode haver demissão de um juiz numa situação de condenação por crime em exercício de funções, e pouco mais. Nos restantes casos, a pena máxima deverá ser a aposentação compulsiva, e em casos como o presente a sanção máxima não deveria ir além da suspensão. Caso contrário, fica aberta a porta para a fácil violação do princípio da inamovibilidade, consagrado na CRA. E isso não pode acontecer.

Por esta razão, conclui-se que a sanção aplicada ao juiz Agostinho Santos viola directamente a CRA.

A QUESTÃO POLÍTICA

Entretanto, também chegou ao nosso conhecimento ter sido interposto, pela mesma Comissão Permanente do CSMJ, um processo disciplinar contra a juíza conselheira Anabela Vidinhas. Quando começa a surgir um padrão, a preocupação aumenta. Recorde-se que a referida conselheira também se mostrou recentemente agastada com os comportamentos do juiz-presidente Joel Leonardo.

Não se pode acreditar que o juiz-presidente tenha encontrado no processo disciplinar e na Comissão Permanente do CSMJ um instrumento aparentemente legal para afastar os que dele discordam. Se isso for assim, é de uma gravidade extrema. Não é demais repetir: os processos disciplinares contra juízes têm uma dimensão constitucional que é imperativo respeitar.

Há que recapitular o básico. O presidente do Tribunal Supremo não é o chefe de todos os juízes. Aliás, o conceito de chefe não existe na magistratura. Cada juiz é o chefe de si próprio, nos limites da Constituição e da lei. Consequentemente, o presidente do Tribunal Supremo tem de aceitar discordância e dissenso. Aquilo a que estamos a assistir é uma forma tosca de controlar a magistratura, o que é absolutamente inaceitável.

Além do presidente do Tribunal Supremo, temos de invocar o presidente da República. Na sua recente viagem aos Estados Unidos, integrada no amplo objectivo de abrir Angola ao mundo e atrair investimento, João Lourenço afirmou que o combate à corrupção, a credibilidade das instituições, o funcionamento da Justiça e a protecção dos investimentos privadossão as suas prioridades.

É um programa que aplaudimos, mas somente se for transformado em prática. E o que estamos a ver na Justiça não é credibilidade nem funcionamento. O presidente da República tem de escolher: ou mantém este diferencial entre o que diz e o que acontece na realidade, ou tenta aproximar a realidade das suas palavras. É evidente que não há Justiça nenhuma do mundo que realmente funcione com recurso a processos disciplinares.

O presidente da República tem de garantir que a justiça funciona, é imparcial, não anda às ordens de ninguém, salvo da Constituição e da lei. A formação militar de João Lourenço não deve impedi-lo de perceber que a magistratura não funciona como a hierarquia das Forças Armadas: na Justiça, não há ordens nem chefes. Há, isso sim, aplicação da lei e recursos.

Se a ideia é reformar a Justiça e renová-la, desiderato que subscrevemos, o que se tem de fazer é uma lei global que reformule os tribunais superiores, que só possa afastar juízes com base em critérios objectivos e genéricos e que não pareça uma vindicta pessoal de uns contra os outros.

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