O Valor de Uma Carta Aberta
António Sérgio, um conhecido filósofo português, escreveu que, quando líamos um mestre e não concordávamos com ele, devíamos reler o texto, pois a nossa discordância dever-se-ia muito provavelmente a ignorância ou insuficiente compreensão das palavras sábias com que deparávamos.
Seguindo o conselho de Sérgio, li e reli várias vezes a carta aberta escrita pelo professor catedrático Raul Araújo acerca da resolução do Conselho Superior da Magistratura Judicial (CSMJ), segundo a qual o CSMJ não irá aplicar uma norma legal porque a considera inconstitucional; em consequência disso, e ao contrário do que diz a lei, vai aceitar que os juízes de direito se candidatem a vagas no Tribunal Supremo.
Antes de mais, importa sublinhar que, concorde-se ou não com os argumentos da carta aberta – questão a que voltaremos adiante –, a iniciativa de Raul Araújo é um marco importante, pois simboliza o diálogo aberto e a livre troca de impressões num ambiente de tolerância, tão necessários para a discussão a alto nível das questões estruturantes do mundo jurídico.
O que está em causa na carta aberta de Raul Araújo é a Resolução n.º 6/22 de 30 de Setembro do CSMJ, que abre concurso público para dez novos juízes no Tribunal Supremo. Nesse documento, o CSMJ considera inconstitucional uma norma contida na Lei n.º 2/22, de 17 de Março, segundo a qual os juízes de direito estariam impedidos de concorrer às vagas, apenas podendo fazê-lo os juízes desembargadores, procuradores de certas categorias e professores ou advogados. Com a referida resolução, o Conselho admite que os juízes de direito também se possam candidatar às vagas, ab-rogando a norma legal em nome da Constituição.
O professor catedrático fustiga com incisividade verbal a resolução do CSMJ, alegando que esta viola o princípio da legalidade, clamando pela intervenção de todos os poderes públicos para sancionar tremendo abuso. O raciocínio de Raul Araújo é linear e elegante, baseando-se na pura ortodoxia da lógica jurídica. Afirma o professor catedrático que só os tribunais têm poderes jurisdicionais para não aplicar normas inconstitucionais e que o CSMJ não passa de um órgão de gestão administrativa, não detendo poderes para não aplicar a lei. Repete-se, o raciocínio de Raul Araújo é simples: só os tribunais podem não aplicar leis por as considerarem inconstitucionais; órgãos de natureza administrativa como o CSMJ só têm de obedecer à lei.
Contudo, o argumento jurídico de Raul Araújo, sendo entendível, não está dotado daquela infalibilidade dogmática, quase papal, que se pensaria depois de lidas as vergastadas que o autor se apresta a infligir nos membros do CSMJ.
O princípio da legalidade seria um princípio sacrossanto no século XIX, no auge de uma visão demasiado positiva do direito, que assentava num mecanicismo que haveria de se revelar fátuo.
Actualmente, antecedendo o princípio da legalidade, temos um princípio mais elástico e materialmente relevante, que é o da obediência primacial à Constituição.
Vejamos o artigo 198.º, n.º 2 da Constituição de Angola (CRA): a “Administração Pública prossegue, nos termos da Constituição e da lei, o interesse público”. Quer isto dizer que, em primeiro lugar, a administração deve obediência à Constituição e só depois à lei. A par deste preceito constitucional, há o artigo 33.º, n.º 2 do Código Penal: “O dever de obediência a ordem de superior hierárquico a subordinado cessa quando o cumprimento da ordem conduzir à prática de qualquer crime.” Daqui se deduz que o princípio da legalidade e da subordinação hierárquica da administração tem de ser compaginado com outros valores.
O direito é essencialmente um balanceamento de valores díspares e muitas vezes divergentes, sendo que a sabedoria jurídica não se encontra em fórmulas rígidas, mas na procura do equilíbrio de interesses e valores dento do quadro jurídico constituído por princípios e regras (não só estas últimas), como bem enfatizou, entre outros, o jurista norte-americano Ronald Dworkin.
Ora, é precisamente essa necessidade de uma leitura constitucional das regras que nos leva a discordar claramente do argumento de Raul Araújo e a defender que, em determinadas circunstâncias, existe um dever de desaplicação administrativa de normas inconstitucionais.
Esse dever de desaplicação administrativa de normas inconstitucionais ainda é discutido, e em alguma doutrina mais conservadora não será maioritariamente reconhecido, mas impõe-se em situações de alta carga constitucional como são as deliberações do CSMJ acerca de juízes, um dos poderes soberanos.
Se repararmos, o CSMJ, não tendo poderes jurisdicionais, não é uma mera repartição administrativa ou departamento burocrático; é, isso sim, um órgão com consagração típica constitucional e com responsabilidades na malha da constitucionalidade. Não choca, ou será até exigível nos termos do primado da Constituição (e só depois da lei) vertido no seu artigo 2.º, n.º 1, que um órgão com sede constitucional, mesmo que não jurisdicional, desaplique normas legais que considere inconstitucionais.
Não pretendemos sugerir que todas as decisões do CSMJ estejam correctas. Aliás, temos publicado várias críticas a uma série de deliberações do CSMJ que nos parecem erradas e ilegais. Mas defendemos que deve existir liberdade de crítica e, sobretudo, transparência na fundamentação e publicitação das decisões.
Isto dito, é sempre possível, para quem tenha interesse legítimo e processual, recorrer aos tribunais e, no limite, ao Tribunal Constitucional (TC) para aferir da validade da desaplicação de uma norma por parte do CSMJ. Isto é, quem tem sempre a última palavra é o TC; o CSMJ não se está a substituir ao TC, está meramente a estender a malha de verificação constitucional, procurando alargar ao máximo o domínio constitucional, mas não usurpando qualquer função do TC. Pelo exposto, parece-nos que não há razão para o alarmismo e a trovoada que ribombam da carta aberta do professor Raul Araújo. O CSMJ pode desaplicar normas que considere inconstitucionais e ao Tribunal Constitucional caberá a última palavra. Deixemos que as instituições funcionem e procurem entre si os necessários equilíbrios constitucionais.