Guerra à Vista no Congo
Não há como esconder o clima de alta tensão que se vive entre a República Democrática do Congo (RDC) e o Ruanda. Teme-se uma escalada que pode envolver vários países, como o Uganda, o Burundi e até Angola.
Este fim-de-semana, mais uma vez, o governo angolano exerceu o seu papel de mediação e apaziguamento de tensões, acolhendo uma nova reunião tripartida dos ministros dos Negócios Estrangeiros de Angola, RDC e Ruanda. O comunicado final dessa reunião tenta apontar rumos de paz e diálogo, mas fica longe de resolver o problema e de afastar as ameaças à paz, pois não cria mecanismos efectivos para retirar as forças insurgentes do território da RDC.
Em concreto, quais são as ameaças à paz? O que se passa entre a RDC e o Ruanda que pode criar uma situação bélica irreversível?
De um lado, temos um país (RDC) riquíssimo em matérias-primas fundamentais para o crescimento económico de todo o mundo, cujo poder central não controla bem o território e onde se avizinham eleições presidenciais difíceis para Dezembro de 2023. Do outro lado, temos um país gerido com sapiência, que fez alianças de longo alcance com o Ocidente, designadamente com o Reino Unido, para que os seus emigrantes fossem acolhidos, e que tem uma dinâmica imparável, mas que precisa das matérias-primas da RDC. Um país que se sente forte e necessita de espaço para crescer.
A actual crise surgiu em Novembro de 2021, quando um suposto grupo militante que se julgava extinto, o Movimento 23 de Março (M23), realizou ataques-relâmpago a posições militares das Forças Armadas da República Democrática do Congo (FARDC) no norte da província de Kivu, a oeste das fronteiras entre o Uganda e o Ruanda. Paulatinamente, o M23 foi ocupando posições em Kivu e forçando as FARDC a fugir. Neste momento, as forças guerrilheiras já estão próximas da capital da província de Goma, ameaçando vivamente a integridade territorial da RDC, bem como as suas populações e riquezas.
Tshisekedi, o presidente da RDC, tem sido fortemente criticado pelos congoleses por não dar meios às Forças Armadas e permitir o descalabro da situação. A actuação do M23 tem demonstrado a fragilidade da liderança de Kinshasa.
É aqui que entra o Ruanda de Paul Kagame. A RDC culpa o Ruanda por reorganizar e armar a mais recente insurgência. O Grupo de Peritos do Conselho de Segurança da ONU sobre a RDC implica o Ruanda no apoio ao M23. Alguns dos principais comandantes do M23 serviram em tempos na Frente Patriótica do Ruanda (RPF) de Paul Kagame.
Portanto, a incursão do M23 parece ser um ataque assimétrico do Ruanda à RDC, em que o governo ruandês recorre ao mesmo tipo de táctica que Putin usou na tomada da Crimeia em 2014, com vista à negação de responsabilidades.
E qual será a grande razão para o Ruanda “invadir” a RDC? Há importantes rivalidades geopolíticas entre o Uganda e o Ruanda, bem como interacções pessoais e traços de personalidade que são relevantes e contribuem para o actual cenário. Porém, acreditamos que no cerne do conflito estão interesses económicos e comerciais difíceis de resolver.
Uma boa parte do território “invadido” ou a “invadir” compreende um lucrativo cinturão de mineração com alguns dos maiores depósitos de coltan do mundo, um material usado em quase todos os dispositivos electrónicos. A RDC é também o maior produtor mundial de cobalto, uma componente-chave nas baterias dos carros eléctricos, que actualmente têm elevada procura mundial.
Parecem existir provas que sugerem que vários grupos rebeldes, de entre os quais se destaca o M23, mas também outros patrocinados pelo Uganda, controlam cadeias de distribuição estratégicas, ainda que informais, desde as minas no Kivu até aos dois países (Ruanda e Uganda). Os insurgentes usam os lucros do tráfico de ouro, diamantes e coltan para comprar armas, recrutar e controlar mineiros artesanais e pagar a funcionários corruptos da alfândega e da fronteira congolesa, bem como a soldados e polícias.
A realidade é que o Ruanda (e também o Uganda e o Burundi) exporta matérias-primas que não controla, pois pertencem à RDC. O Ruanda tem sido repetidamente mencionado em relatórios da ONU por lucrar com minerais contrabandeados da RDC para reforçar as suas próprias exportações.
Cerca de 40% de todo o coltan mundial foi oficialmente produzido na RDC em 2019. No entanto, grandes quantidades são traficadas para o Ruanda e exportadas a partir daí. O Ruanda é o terceiro maior exportador mundial do produto, embora as suas reservas sejam mínimas. No fundo, o Ruanda precisa do acesso às matérias-primas da RDC para concretizar o seu potencial económico.
Naturalmente, o conflito envolve outros factores, nomeadamente étnicos, mas a verdade é que tudo aponta para que a RDC seja uma espécie de bastidores do desenvolvimento económico ocorrido noutras partes do mundo: o grande boom das electrónicas e dos carros eléctricos. Todos querem liderar nos ganhos da transição energética e do mundo digital, mas esquecem-se dos custos que isso acarreta, mais uma vez, para África. Como se vê, a situação não afecta apenas os países vizinhos, nomeadamente Angola. Trata-se, sim, de um enorme jogo global com ramificações por todo o mundo. Por essa razão, o papel de Angola como mediador tem sido acompanhado com minúcia e interesse. E também pela mesma razão, sendo os interesses tão intensos e globais, tudo se pode descontrolar num ápice.