27 de Maio: o Sobrevivente de Um Pelotão de Fuzilamento
“Há uma grande verdade no ditado popular que afirma: “Cada ancião que morre é uma biblioteca que se queima.”
Hoje é dia 27 de Maio. Alguns dos anciãos que guardam testemunhos importantes para o arquivo histórico que se deve criar sobre o massacre de 1977, há 45 anos, têm caminhado para a eternidade, e assim levam consigo conhecimentos e bibliotecas únicas, que desaparecem para sempre.
Em 1995, ávido de conhecer a história contemporânea da Angola, transmitida oralmente por alguns dos seus protagonistas, tive o privilégio de ouvir o testemunho pessoal de dois nacionalistas, Joaquim Pinto de Andrade e Domingos Coelho da Cruz, sobre a história angolana de que fizeram parte.
Estes dois amigos juntavam-se muitas vezes no café do Centro de Imprensa Aníbal de Melo, para uma conversa de fim de tarde. Algumas vezes, Joaquim Pinto de Andrade pedia-me que o acompanhasse, a pé, até ao edifício onde residia, na Avenida Marginal. Foi assim que conheci a história de Domingos Coelho da Cruz.
A narrativa deste homem sobre o que lhe aconteceu naquele 27 de Maio de há 45 anos marcou-me profundamente. Este mais-velho, segundo era do conhecimento público e ele próprio contava, era um dos amigos mais próximos e leais de Agostinho Neto, então fundador da Nação, presidente da República Popular e do MPLA. Agostinho Neto esgueirava-se muitas vezes do palácio para ir jogar cartas e beber uns copos com Domingos Coelho da Cruz e outros amigos.
Nada fazia com que o mais-velho desconfiasse que também seria detido pelos homens de Agostinho Neto, nas purgas do 27 de Maio.
Domingos Coelho da Cruz contou, nesse dia no CIAM, que foram buscá-lo a casa com um aparato militar que incluía um carro de assalto, e que o levaram para uma das instalações da então famigerada Direcção de Informação e Segurança de Angola (DISA), para ser fuzilado.
O malogrado descreveu a forma terrível como o levaram, despido, para um paredão, sem interrogatório, julgamento ou que fosse. A ordem era de fuzilamento imediato. Momentos antes da execução, chegou uma mensagem urgente, ordenando que o retirassem do paredão. Foi aí levado à presença da então secretária do chefe adjunto da DISA, Henrique de Carvalho Santos “Onâmbwe”, para falar com o presidente.
Segundo o depoimento de Domingos, ele soube neste momento que, por mero acaso, a secretária o viu a ser encostado ao paredão e telefonou imediatamente a Agostinho Neto, para perguntar ao presidente se tinha pessoalmente ordenado o fuzilamento do seu amigo. A secretária achou estranho não ter visto o seu nome nas listas assinadas para fuzilamento, e vê-lo ali diante da morte. Parece que Agostinho Neto se manifestou surpreendido com a ocorrência e agastado com “os excessos” dos seus executores. Conclusão: Domingos Coelho da Cruz sobreviveu por uma unha.
Ao cabo de décadas de independência, muitos países africanos, incluindo Angola, permanecem imobilizados no trabalho de produção interna da narrativas da sua história contemporânea. E assim os mais-velhos vão morrendo, levados pelo tempo e levando consigo o que sabem.
Angola é um país que cuja existência se deve ao derramamento de sangue de mais de um milhão de cidadãos, com a infindável guerra civil, e assente na pilhagem dos recursos naturais pelos seus próprios dirigentes e associados.
Para Domingos Coelho da Cruz, a tentativa de fuzilamento de que foi alvo tratou-se de uma cabala engendrada pelo grupo a quem o presidente entregou os comandos do massacre, para o isolarem cada vez mais de qualquer influência moral. Os interesses de grupo, as lutas ideológicas e de poder tem vindo até hoje a destruir as estruturas morais e cívicas da classe política nacional, que deveriam ser os pilares do serviço público, da própria sociedade e da soberania nacional. Na ausência de moral, a política é apenas um instrumento de poder que usufrui de meios legítimos para a violência contra as massas e para o saque.
No ano em que se celebra com pompa e circunstância o centenário de Agostinho Neto, a crueldade do seu poder sobrepõe-se a qualquer outro legado. Por isso, não deixa de ser arrepiante quando Neto é tratado como um humanista.
Nunca se chegará à reconciliação nacional sem o conhecimento definitivo da verdade. A iniciativa do presidente João Lourenço, de pedido de perdão pelas vítimas dos conflitos em Angola, só terá efeito quando for acompanhada de um processo transparente de busca e estabelecimento da verdade. Por isso, é importante que a História não permaneça apenas na tradição oral e que seja escrita, para que as gerações mais novas e vindouras possam estudar e apreciar a complexidade das figuras históricas do país, pelo bem e pelo mal que causaram à pátria e aos seus concidadãos. Trata-se de lições da História que não precisam de ser embelezadas ou omitidas. Angola precisa do encontro com a verdade para forjar um futuro diferente.