Angola e a Dívida Oculta de São Tomé

A 25 de Julho de 2015, a China-Sonangol Investment transferiu, a partir da Indonésia, o montante de dez milhões de dólares para a conta da República de São Tomé e Príncipe no banco português Caixa Geral de Depósitos. Esse valor fazia parte de um acordo de crédito, no total de trinta milhões de dólares, entre o China International Fund (CIF) e o governo são-tomense. Os restantes vinte milhões de dólares “desapareceram”, “esfumaram-se”, “evolaram-se”, e o governo de São Tomé não sabe nem como solicitá-los, nem a quem pagar a dívida dos dez milhões de dólares. Um caso que é no mínimo caricato, e que envolve Angola por intermédio da Sonangol.

Para o nível de pilhagem e desperdício a que os angolanos estão habituados, dez milhões de dólares são trocos, mas no caso de São Tomé representa cerca de 2,5 por cento do seu Produto Interno Bruto (PIB), mexendo, por isso, com a capacidade de endividamento deste país.

Passemos a uma explicação mais clara, de acordo com as mais de cem páginas de documentos em posse do Maka Angola.

No exacto dia da transferência dos dez milhões, o CIF assinou o Acordo de Empréstimo – uma simples página – com a República Democrática de São Tomé e Príncipe, no qual mutuava trinta milhões de dólares a este país. O contrato, assinado por Américo d’Oliveira Ramos, então ministro das Finanças, Administração Pública, Defesa e Ordem Interna, destinava-se à construção de um novo centro administrativo e residências para funcionários públicos na capital, São Tomé. Na altura, o primeiro-ministro era Patrice Trovoada, o qual desempenha, como veremos, um papel fundamental nesta história.

Com um período de carência de cinco anos, o empréstimo deveria ser pago, em dinheiro ou de “outra forma”, até 2036, com uma taxa de juros anual de um por cento. Talvez por falta de domínio da língua inglesa, o governo de São Tomé assinou o contrato original enquanto “lender”, ou seja, credor, enquanto o CIF, representado por uma assinatura ilegível e sem referência à função ou nome do signatário, assinou como “borrower”, ou seja, devedor.

O então primeiro-ministro e chefe de governo, Patrice Emery Trovoada (na foto principal), emitiu o mandado para assinatura do contrato no mesmo dia 20 de Julho de 2015, “nos termos e condições deliberados pelo Conselho de Ministros, na sua 19.ª sessão, realizada no dia 6 de Junho” desse ano.

Sem qualquer explicação ou documentação de suporte, segundo os documentos em posse do Maka Angola, a China-Sonangol Investment procedeu ao pagamento dos dez milhões de dólares a partir da sua sede na Indonésia, por via do banco norte-americano JP Morgan Chase. A China-Sonangol Investment é um consórcio entre a petrolífera angolana Sonangol e o CIF, fazendo parte de uma teia de interesses privados com empresas denominadas Sonangol, sediadas na Indonésia, na China e em Singapura.

A 14 de Fevereiro de 2019, o governo são-tomense escreveu ao CIF a solicitar o pagamento dos restantes vinte milhões de dólares, abordando as possíveis modalidades de pagamento, uma vez que não pode pagar à China-Sonangol, por não ter assinado contrato com esta entidade.

Por sua vez, a 8 de Março de 2019, Wuando Castro de Andrade, ministro da presidência do Conselho de Ministros e Assuntos Parlamentares, respondeu ao Ministério das Finanças, informando que “não encontramos nos arquivos da Presidência do Conselho de Ministros nenhuma acta das Sessões do Conselho de Ministros do XVI Governo Constitucional”. Ou seja, não há registo oficial de alguma vez o governo ter discutido, de forma colegial, o crédito sino-angolano e a sua anuência, contrariando o mandado assinado por Patrice Trovoada.

Passados quatro dias, o gabinete do presidente da Assembleia Nacional de São Tomé veio esclarecer, após pesquisa na base de dados do processo legislativo, que nunca constou “qualquer proposta de resolução” acerca do acordo de empréstimo entre o Estado de São Tomé e Príncipe e o CIF. Segundo a legislação vigente em São Tomé, em particular a Lei n.º 1/2013 (Lei Quadro da Dívida), os acordos de empréstimo ao Estado de São Tomé e Príncipe devem ser submetidos à aprovação da Assembleia Nacional.

Este conjunto de factos levou à detenção preventiva do ex-ministro das Finanças Américo Ramos, por três meses. Já o ex-primeiro-ministro Patrice Trovoada, constituído arguido no mesmo processo, está ausente de São Tomé e Príncipe desde 2018. Fonte judicial garante que a Procuradoria-Geral não deu seguimento à acusação dos arguidos, por falta de resposta às suas cartas rogatórias.

No passado dia 9 de Abril, o partido Acção Democrática Independente (ADI) reelegeu Patrice Trovoada como seu presidente, com 99,6 por cento dos votos, apesar de este ter participado por videoconferência, devido à sua ausência do país nos últimos quatro anos.

De tal ordem é a embrulhada, que nem o CIF (Hong Kong e Angola), nem a China-Sonangol (Indonésia) nem o Estado angolano se dignam a responder às missivas das autoridades são-tomenses que solicitam o esclarecimento sobre a pertença dos dez milhões de dólares e a quem o montante deve ser reembolsado. O mesmo se passa com o estranho “desaparecimento” dos vinte milhões de dólares.

Por sua vez, a 22 de Janeiro de 2019, a Embaixada da China em São Tomé, aquando da interpelação por parte do governo local a propósito do CIF, respondeu que nada tinha a ver com essa companhia, cuja única ligação à China era a sede em Hong Kong.

Mas o caso não fica por aqui.

As embarcações da Sonangol

No ano de 2016, o então primeiro-ministro Patrice Trovoada “ofereceu” ao Estado são-tomense um total de cinco embarcações, onde se incluíam dois catamarãs com capacidade para 350 pessoas cada e ainda três vedetas de patrulha marítima.

Estas embarcações foram fabricadas pela empresa espanhola Rodman Polyships, que, na altura das encomendas, era detida em 90 por cento do capital pela China-Sonangol Investment.

A 16 de Março de 2020, Óscar Rodríguez, director-geral e vice-presidente da Rodman Polyships, informou as autoridades são-tomenses de que couberam ao seu pai, presidente da empresa, todas as negociações sobre as referidas embarcações.

“A empresa que adquiriu estas e muitas outras embarcações à Rodman Polyships foi a China-Sonangol, de Singapura.” Além de fornecer o endereço da empresa compradora, Óscar Rodríguez remeteu à China-Sonangol documentos sobre os custos da operação e da pertença das embarcações.

Inicialmente, a avaliar pelas maquetas de construção das embarcações, datadas de 15 de Outubro de 2014, estas destinavam-se à Sonangol. No entanto, as inspecções de construção acabaram por certificar o então primeiro-ministro de São Tomé, Patrice Emery Trovoada, como o proprietário das mesmas embarcações.

Por ausência de documentação sobre a propriedade das embarcações, até à data o Estado são-tomense não conseguiu registá-las nas contas nacionais como património público. Um dos catamarãs, entretanto gravemente danificado, não passa de uma carcaça junto ao Porto Pesqueiro das Neves, servindo de brinquedo para pinotes das crianças.

Sem se dar por vencido, a 3 e a 17 de Novembro, o governo são-tomense escreveu a Vera Daves de Sousa, ministra das Finanças de Angola, solicitando apoio para esclarecimento da verdade. O governo são-tomense continua a querer saber se os bens foram ou não adquiridos com recurso a fundos públicos angolanos. Até à data, as autoridades angolanas acusaram apenas a recepção das missivas.

Para resumir: há dez milhões de dólares e cinco embarcações marítimas entregues a São Tomé, com o envolvimento da Sonangol, sem que nenhuma entidade real assuma o crédito ou as ofertas.

E existe um empréstimo de trinta milhões de dólares americanos mandado assinar por Patrice Trovoada, mas do qual não se sabe quem disponibilizou o dinheiro – se o tesouro angolano, se a Sonangol ou se algum privado angolano – e de onde vinte milhões de dólares pura e simplesmente se esfumaram. Obviamente que, em termos de montantes absolutos, esta situação não tem a relevância das famosas “dívidas ocultas” de Moçambique. Contudo, em termos relativos, este valor representa 7,5 por cento do PIB de São Tomé e Príncipe e, sobretudo, mostra um padrão de governação semelhante: os responsáveis políticos autorizam e usam empréstimos estrangeiros de forma ilegal, desrespeitando a Constituição e as leis, e, no fim, parte substancial do dinheiro desaparece. Patrice Trovoada, enquanto responsável último, tem de prestar esclarecimentos sobre isto, esteja onde estiver.

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