Touradas e Deliberações WhatsApp no Constitucional

No momento em que se escreve esta coluna ignora-se em absoluto a decisão do Tribunal Constitucional acerca do segundo Congresso da UNITA que elegeu Adalberto Costa Júnior como presidente do partido. Na realidade, essa decisão já não interessa. Se o Tribunal anular o Congresso, a UNITA volta a eleger Adalberto e assim sucessivamente. Será um carrossel legal que não resolverá nada.

Já muitas vezes escrevemos nestas colunas que o direito não resolve por si só questões estruturais. Pode resolver disputas, pode acelerar transformações, pode ordenar a sociedade, até pode ser um programa de futuro, mas nunca é a solução unívoca e final de um problema. Por isso, quem está contra a eleição de Adalberto Costa Júnior como presidente da UNITA terá de o confrontar de outras formas, a primeira das quais é ganhar eleições.

Isto não quer dizer que o Tribunal Constitucional não tenha argumentos legais para ir anulando congressos, mas também já defendemos que a jurisprudência em termos de partidos políticos deste tribunal superior deve ser de contenção, isto é, só intervir em casos de flagrante incumprimento dos princípios constitucionais mais relevantes, de defesa dos direitos fundamentais e de violação das leis mais determinantes da República.

De resto, é preferível que o tribunal adopte uma interpretação restritiva da lei, sempre que possível, e se abstenha de grandes activismos, guardando-se para os momentos efectivamente importantes. Neste sentido, para lamento de muitos leitores, entendemos que o tribunal andou bem quando havia dúvidas sobre a nacionalidade de Adalberto Costa Júnior. Não podia haver. Resolvido o assunto, não se justifica insistir.

É por isto que o teatro do absurdo que se desenvolveu acerca de um putativo projecto de acórdão de uma juíza relatora que anulava de novo o Congresso da UNITA é de deplorar. Não pela eventual decisão – o Tribunal deve ser livre, dentro dos parâmetros que apontámos, de decidir –, mas pela imagem de descontrolo total e de falta de credibilidade que tal vazamento acarretou para o Tribunal.

O anterior presidente do Tribunal Constitucional, ao abandonar o cargo, quis deixar um título bombástico para os jornais e escreveu acerca de um suicídio da democracia. Na realidade, aquilo a que estivemos a assistir nos últimos dias foi a uma tentativa de suicídio do Tribunal Constitucional.

Num dia surge do nada, mas inundando as redes sociais – o autor deste artigo recebeu o projecto de três pessoas diferentes –, um suposto acórdão não assinado e sem votos de vencido que declarava nulo o Congresso da UNITA de Dezembro de 2021. A argumentação do acórdão era sofrível e continha um erro clamoroso de português. Isso levantava suspeitas, mas não era concludente.

Posteriormente, não existiu reacção oficial do tribunal a este vazamento ou falsificação de informação. Se for falsificação, é provavelmente crime, e a competente queixa-crime deveria ter sido de imediato anunciada. Se for vazamento, pode também configurar um crime, embora de diferente natureza, ligada à perturbação do Estado de direito, e o anúncio de procedimentos também deveria ter tido lugar. Não aconteceu nada, e o projecto navegou “alegremente” pelo espaço digital durante horas, criando a maior das confusões.

No entanto, parece que num grupo de WhatsApp a juíza-presidente Laurinda Cardoso e outro juiz do tribunal Carlos Teixeira divulgaram fotos do projecto do acórdão com os dizeres “Fake” ou “Falso” apostos. Tal deu origem a várias interpretações, uma das quais alegando que estes juízes não concordavam com o projecto e o iam “chumbar” ou “arquivar”.

Com o atipicismo tradicional do direito angolano, foi portanto inaugurada uma nova forma de deliberação judicial: a deliberação por WhatsApp. E assim fomos informados de que afinal o acórdão não era.

Aparentemente, só passados quatro dias inteiros terá surgido um esclarecimento de um oficial do Tribunal. A directora do gabinete de assessoria técnica e jurisprudência do Tribunal Constitucional, Aida Gonçalves, terá afirmado que é falso o acórdão posto a circular que atesta uma suposta anulação do XIII Congresso da UNITA.

A gravidade do caso talvez tivesse merecido um pronunciamento do gabinete da presidente do Tribunal e dirigido a todo o país, e não a um órgão de comunicação em especial. E necessariamente o consequentemente processo-crime.

O que assusta nisto tudo é que se começa a querer tornar o Tribunal Constitucional como o problema, e não o guardião da Constituição. Este é o mais alto tribunal da terra naquilo que respeita aos direitos fundamentais dos cidadãos e ao cumprimento dos princípios e das regras políticas. Não há nenhum superior.

Desde o político norte-americano Alexander Hamilton, primeiro secretário de Estado do Tesouro de George Washington, de Alexander Bickel, um prestigiado académico da universidade de Yale, ou de Stephen Breyer, juiz do Supremo Tribunal norte-americano, de uma ou de outra forma, ficou bem expressa a ideia de que a força dos tribunais não reside no exército, na polícia ou nos impostos, mas sim na credibilidade e na confiança que inspira aos cidadãos.

O comunicado da UNITA de 21 de Março de 2022, emitido pelo Secretariado Executivo do Comité Permanente da Comissão Política, torna óbvios os perigos de descredibilização do tribunal. No seu ponto 11, afirma-se: “Contra a ditadura do poder judicial partidarizado, o Povo tem de ser mobilizado para defender a democracia e as suas conquistas.” Obviamente, este convite à desconsideração das decisões do Tribunal Constitucional e à entrega do poder à mobilização do povo é extremamente preocupante em qualquer sociedade, pois acaba por convidar a uma justiça popular e não racional.

Tal obriga a uma reflexão por parte do Tribunal Constitucional, o qual, para exercer a sua função e decidir sem medo, garantindo o acatamento das suas decisões, tem de apresentar uma imagem de estudo e consciência jurídica plena, apartando-se de pequenas discussões e dissensões. As pessoas não podem ver as discussões que têm na cozinha ou no bar transportadas para o WhatsApp por juízes e verificar que a argumentação judicial é igual.

Na verdade, um dos maiores problemas do mandato de João Lourenço é a incorrigível banalização do poder judicial em Angola por algumas das suas mais importantes figuras, em vez de ser o principal esteio de confiança e do cidadão no poder do Estado e da sua credibilização.

Isso tem de mudar. O Tribunal tem de se fazer respeitar através da forma como aplica e interpreta a lei. A sua legitimidade deriva do exercício das suas funções; nessa medida, a justiça tem de ser vista a ser feita com dignidade, elevação e, obviamente, com raciocínio jurídico adequado.

Por isso, é com mais um apelo à dignificação, à contenção e à reserva do Tribunal Constitucional que terminamos estas linhas. Isto não quer dizer que o Tribunal não deva decidir casos difíceis e enfrentar multidões, se for esse o caso, mas deve fazê-lo com a coragem da ciência e não o vendaval dos loucos.

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