Perigo à Vista: A Comissão de Coordenação Judicial

“Na verdade, nunca sequer entendi para que fins foi criada essa coordenação”, assim se refere uma alta figura da magistratura judicial à Comissão Nacional de Coordenação Judicial, um órgão previsto no artigo 5.º da Lei Orgânica sobre a Organização e Funcionamento dos Tribunais de Jurisdição Comum.
E prossegue: “Durante anos houve sempre reunião de coordenação dos órgãos da administração da justiça que se realizava todos os trimestres. Que resultados saíram destes encontros? Nenhuns! Em todos os encontros os temas eram sempre os mesmos e o incumprimento das recomendações a tónica permanente, semestre após semestre as mesmas queixas e as mesmas respostas. Acham agora que esse órgão vai funcionar? Nunca.”
Não se percebe em que mente surgem propostas de lei sobre os tribunais que ignoram aquilo que é óbvio. A proposta de alterações da lei orgânica sobre a organização e o funcionamento dos tribunais da jurisdição comum faz lembrar aquele verso antigo de um poeta imemorial: “Nunca, ó Cirne, te aconselhes com um homem reles, / quando quiseres levar a cabo um assunto sério.”
Estamos, agora, perante a alteração à Lei Orgânica sobre a Organização e Funcionamento dos Tribunais de Jurisdição Comum, aprovada pela Lei n.º 2/15, de 2 de Fevereiro. Segundo os seus promotores, a proposta pretende “reajustar as competências dos tribunais de Comarca, introduzindo um conjunto de matérias, clarificar a forma de concretização da autonomia administrativa e financeira dos tribunais de jurisdição comum, definir as regras no processo de gestão dos recursos humanos dos tribunais e estabelecer regras sobre a gestão das secretarias judiciais”.
Esta alteração levanta um primeiro comentário referente à “moda” de modificações constantes às leis. Trata-se de um grave defeito da legiferância portuguesa (por exemplo, o Código Penal português já foi alterado 54 vezes desde 1995), que não deveria ser importado para Angola. Não é certo que uma lei de 2015 necessitasse já de uma ampla alteração.
No entanto, este não é o aspecto mais importante. O que é fundamental é apreciar o sentido e o alcance destas alterações e ver aonde elas nos levam. E o pior não é o que é alterado, mas o que não é alterado.
O primeiro e grave obstáculo a uma ponderada apreciação da proposta encontra-se no articulado do artigo 5.º, que mantém um órgão não só inconstitucional, como ainda por cima redundante. A redacção do artigo 5.º é a seguinte: “A organização e o funcionamento dos Tribunais judiciais, bem como a qualidade e a eficiência dos serviços prestados, devem ser apreciados pela Comissão Nacional de Coordenação Judicial, sem prejuízo da avaliação do desempenho profissional dos Magistrados Judiciais e do Ministério Público, a realizar pelos respectivos Conselhos Superiores das Magistraturas.” Já era assim na versão de 2015.
Vamos ser muito claros. Este artigo não pode existir. Não pode existir um órgão não previsto na Constituição encarregado de apreciar a organização, o funcionamento, a qualidade e a eficiência dos tribunais judiciais. É uma espécie de controlador externo dos tribunais, um corpúsculo saído não se sabe de onde que rapidamente poderá constituir um cancro para a independência dos tribunais.
Só ainda não o foi porque andou relativamente “adormecido”. Terá tido a sua primeira reunião em Janeiro de 2020, cinco anos depois de criado pela lei de 2015. Eventualmente terão depois ocorrido outras reuniões, mas sem resultados. Estranhamente, a primeira reunião teve lugar no Ministério do Interior, o que é muito pouco próprio e indicia os perigos evidentes da confusão de poderes.
A manutenção e densificação intensa que a presente proposta realiza em relação a este órgão é perigosa, pois de um momento para o outro o que está “adormecido” e é redundante pode “acordar” e tornar-se uma ameaça real à independência do poder judicial.
A independência e a imparcialidade do poder judicial implicam que toda a interferência de outros poderes esteja claramente prevista na Constituição e seja objecto da maior transparência. Que o presidente da República nomeie o presidente do Tribunal Supremo é algo previsto na Constituição e que faz parte das dinâmicas de legitimação dos juízes dentro do equilíbrio constitucional. Que o Conselho Superior da Magistratura Judicial (CSMJ) tenha determinados poderes disciplinares e de gestão, também está previsto na Constituição, e nesse caso já se sabe que as funções do CSMJ são muito estritas e não podem contender com o livre exercício da judicatura.
Este órgão – Comissão Nacional de Coordenação Judicial – não está previsto na Constituição. Mesmo sendo uma invenção, a dita Comissão surge detalhada a partir dos artigos 85.º e seguintes desta proposta de lei, possuindo vastas competências descritas no artigo 86.º. Dessas competências destacam-se o acompanhamento e a apreciação do desempenho funcional dos tribunais judiciais e dos órgãos de justiça de jurisdição comum, a proposta de planos, programas e projectos que sejam do âmbito e do interesse do funcionamento do sistema judiciário comum e a proposta aos órgãos competentes de sindicâncias ou inspecções extraordinárias aos tribunais, a qualquer organização da justiça ou a qualquer agente judicial, entre outros.
Percebe-se que está aqui contido todo o potencial para que esta Comissão, a partir do momento em que se torne realmente operacional, se imiscua em todo o funcionamento dos tribunais e esvazie em boa parte as competências do CSMJ.
De acordo com o artigo 87.º, a composição da Comissão é a seguinte:
- Presidente do Tribunal Supremo que preside;
- Procurador-geral da República;
- Presidentes dos Tribunais da Relação;
- Subprocuradores-gerais da República Titulares nos Tribunais da Relação;
- Juízes presidentes das Comissões Provinciais de Coordenação Judicial;
- Procuradores da República titulares na Província;
- Bastonário da Ordem dos Advogados.
Isto é o que se chama em português corrente “uma salada russa”, uma “xungaria”, que não respeita a essência do poder judicial, com o seu poder soberano e independente. Está-se a fomentar uma câmara de lobby ou pressão para gerir os assuntos dos tribunais, ainda por cima diluindo responsabilidades. Chegar-se-á a uma situação em que o responsável por determinado estado de coisas na justiça não é o presidente da República, não é o ministro da Justiça, não é o CSMJ, não é o presidente do Tribunal Supremo e não será a Comissão de Coordenação.
Além de estarmos perante uma anomalia constitucional, não se percebe a lógica que subjaz à promoção de mais um órgão que obviamente se sobrepõe aos já existentes.
A esta Comissão Nacional juntam-se ainda as Comissões Provinciais de Coordenação Judicial, que têm um presidente todo-poderoso (artigo 92.º), competindo-lhe, designadamente: representar, como entidade judicial, a Província Judicial e coordenar o funcionamento das unidades dos tribunais aí existentes; elaborar, para apresentação à Comissão de Coordenação Judicial, um relatório anual sobre o movimento processual, identificando, entre outros, os processos que estão pendentes há mais de dois anos ou por tempo considerado excessivo ou que não são resolvidos em prazo entendido como razoável, o estado dos serviços quanto à eficiência e à qualidade da resposta judicial; decidir, nos termos e nos limites definidos na lei, a transferência e a reafectação de funcionários judiciais dentro da respectiva província.
Não há espaço para detalhar mais aprofundadamente o funcionamento deste órgão. Admitindo que algumas das suas competências têm de ser efectivamente exercidas, isso não pode ser resolvido com a criação de órgãos mistos dentro dos tribunais, com poderes tão alargados e amplos, descritos de forma abstracta e certamente colidindo com órgãos existentes e em funcionamento.
O tempo actual é de uma extrema necessidade de reforçar as instituições, o seu funcionamento e a sua credibilidade. Por isso, é muito difícil entender como se mantém este tipo de soluções tão pouco compreensíveis, que parecem apenas prometer a acumulação de títulos. Além de tudo o resto, não se compreende que um presidente do Tribunal Supremo como Joel Leonardo, que tem tido extrema dificuldade em exercer o seu múnus, que não promove os consensos e a harmonia judicial, que acumula por inerência a presidência do CSMJ, ainda seja também o presidente da Comissão Coordenadora. Parece haver uma ânsia de abarcar poder unipessoal e não de estabelecer instituições fortes e perduráveis.
Como refere o magistrado que temos vindo a citar: “O que se necessita é pessoal competente com espírito de patriotismo, funcionalidade e respeito pela instituição. Não é a criação de mais órgãos, para dar cargos sei lá a quem, que melhora.” Estamos perante uma reafirmação surpreendente, mesmo louca, que não corrige e muito menos melhora o sistema judicial.