Os Perigos da Judicialização da Política

Não se pode pedir ao direito que resolva todos os problemas de uma sociedade, nem esperar que ele os resolva. O direito nunca é a solução definitiva e global de uma situação, é um mero coadjuvante do bom senso, da ordem razoável e simultaneamente da estabilidade e do progresso humano. Querer que o direito e a justiça resolvam os problemas políticos fundamentais é puro disparate.

Vejamos um caso que nada tem a ver com as discussões em Angola, mas tem exaltado multidões em vários países: o aborto. O aborto é um assunto que divide as consciências e as populações em muitos países, sobretudo os de influência cristã. Nos Estados Unidos, os políticos não se puseram de acordo sobre uma lei que permitisse a interrupção voluntária da gravidez, e teve que ser o Supremo Tribunal norte-americano, em 1973, na famosa decisão Roe v. Wade, 410 U.S. 113, a decidir que a Constituição dos Estados Unidos protege a liberdade da mulher grávida para optar por fazer um aborto sem restrição excessiva do governo. Isso não resolveu a questão. Ainda agora, em 2022, o tribunal norte-americano se encontra perante mais uma tentativa de restringir o aborto. Teme-se, porque a maioria dos juízes é conservadora(graças às várias nomeações de Donald Trump), que o tribunal se decida por reverter a decisão Roe v. Wade e declare que afinal o aborto, em muitas das circunstâncias actualmente permitidas, é inconstitucional.

Portanto, a intervenção do Supremo Tribunal norte-americano num tema tão discutido não resolveu a polémica, apenas a adiou – por umas dezenas de anos, é verdade, mas sem solução definitiva e global.

Pelo contrário, em Portugal, não houve uma decisão dos tribunais, mas uma decisão legislativa em 2007, precedida de um referendo. O aborto nesse país é perfeitamente livre por opção da mulher nas primeiras 10 semanas de gravidez. Na presente campanha eleitoral portuguesa para as eleições legislativas de 30 de Janeiro de 2022, este é um assunto fora de discussão, não tendo qualquer relevo. Em Inglaterra, desde uma Lei do Parlamento de 1967, também há razoável liberdade para fazer um aborto e o assunto não é hoje objecto de intensa discussão.

Esta excursão sobre o aborto serve para alertar para os perigos de se achar que a política se resolve sistematicamente com recurso ao direito. Não haja ilusões: as questões políticas essenciais não se resolvem com recurso ao direito.

Em Angola, está a instalar-se uma estranha predominância das questões jurídico-legais sobre todas as outras. Essa preponderância deve ser contrariada, no sentido de obter maior equilíbrio. Naturalmente, o ápice de tal tendência foi o famoso acórdão n.º 700/21 do Tribunal Constitucional, que declarou nulo e sem efeito um Congresso da UNITA.

Agora, aparentemente, existem acções judiciais para declarar nulos os posteriores Congressos da UNITA e do MPLA, gerando as mais variadas teorias da conspiração sobre intenções partidárias relativamente a essas novas nulidades, a mais bizarra sendo aquela que defende que é do interesse do partido do governo que ambos os congressos partidários ocorridos em Dezembro sejam declarados nulos, pois tal avançaria com a possibilidade de as futuras eleições gerais serem disputadas entre João Lourenço e Isaías Samakuva. Nem vale a pena discutir as motivações jurídicas por detrás de semelhante hipótese, pois bastaria à UNITA modificar o seu candidato a presidente da República para esvaziar tais perambulações jurídicas.

Acima de tudo, o que importa é não confundir os planos nem centrar no plano jurídico aquilo que é do foro político.

Há situações políticas que têm de ser resolvidas juridicamente. Como já antes escrevemos, considerámos que o Tribunal Constitucional andou bem quando anulou o Congresso da UNITA de 2019. Não tinha sentido existir um candidato a presidente da República cujo processo inicial de designação oferecia dúvidas, mesmo no interior da UNITA, conforme se viu nas actas apresentadas em juízo. Por motivos políticos, essa decisão tem sido muito criticada por juristas. Contudo, a decisão do tribunal esteve certa, como correcta esteve a reacção da UNITA ao acatar a decisão e proceder a novo Congresso, que reelegeu Adalberto da Costa Júnior.

Ao contrário do que os mesmos juristas mais exaltados quiseram fazer transparecer, foi um triunfo do Estado de direito, quer pela posição legal do tribunal, quer pelo comportamento subsequente da UNITA.

No entanto, isto não quer dizer que se deva esperar que o Tribunal Constitucional seja o árbitro de todas as disputas políticas. Não pode e não deve sê-lo. A politização do poder judicial tem sempre consequências nefastas. Os juízes não cobram impostos, não têm exército, são o poder mais fraco; por isso, torná-los uma espécie de poder moderador é inexequível, pois eles não têm força.

Não tendo força, a independência dos juízes facilmente pode ser colocada em causa, pedrdendo eles rapidamente legitimidade para decidir. E, se perdem a legitimidade, o direito deixa de imperar; deixando de imperar, o direito cede lugar à força – o último argumento dos reis, como estava gravado os canhões de Luís XIV de França. Neste sentido, os políticos têm de ser especialmente cautelosos ao submeter casos aos tribunais. É evidente que o acesso aos tribunais é livre e deve ser permitido a todos. No entanto, os tribunais não podem ser substitutos da política, e na política vence-se pelo voto e pela argumentação. Usem-se os tribunais para construir um caso, para ajudar a encontrar uma solução, mas não como elemento decisivo e definitivo, que não o são. Este é o tempo de o governo apresentar as suas conquistas e os seus resultados políticos, económicos e sociais, e de a oposição apresentar as suas críticas e contrapropostas. Não é tempo de juristas.

Comentários