“Matam Pessoas como Animais”: Notícias de Cafunfo
Em Cafunfo, o valor da vida humana pode bem ser avaliado em 250 mil kwanzas, o preço exacto de um caixão.
Por ter matado Nelito Caxita, de 27 anos, a 26 de Abril, a empresa privada de segurança Kadyapemba Segura Lda. pagou esse valor à família enlutada.
No mesmo dia, a Kadyapemba também pagou 250 mil kwanzas depois de um guarda seu ter torturado até à morte o adjunto do soba do bairro Sacutxanga, Romeu Bernardo, de 47 anos. O corpo deste homem, que deixa dez filhos órfãos, foi abandonado num buraco durante cinco dias, com a cabeça e os braços de fora.
Já Yanvu João Modesto, baleado no pé, a 26 de Abril, porque atravessava a ponte do Binda, recebeu da mesma Kadyapemba comprimidos no valor de 1500 kwanzas (o equivalente a dois dólares), como compensação por ter levado um tiro.
É este o mísero valor da vida, em Cafunfo, bem patente nos casos que ora narramos.
A Kadyapemba é a empresa privada de segurança, criada na província do Kwanza-Norte pelo actual comandante provincial da Polícia Nacional em Luanda, comissário Eduardo Fernandes Serqueira. A empresa foi licenciada a 20 de Janeiro de 1999 e foi contratada pela Sociedade Mineira do Cuango (SMC) para proteger a sua concessão diamantífera.
O Maka Angola contactou telefonicamente a sede da Kadyapemba. O seu director de operações, Manuel José Constantino, explicou o seguinte: “Não posso prestar nenhuma declaração. Não tenho orientação superior. Os casos dos dias 21 e 26 estão entregues às autoridades. Sobre os pagamentos aos guardas, não temos conhecimento.”
Tiro na nuca
Ontem, por volta das 14h00, Cafunfo testemunhou o enterro de Nelito Caxita, cuja morte gerou uma onda de repúdio e consternação nas ruas.
Mualucalo Didi testemunhou a morte do seu amigo e colega de garimpo, e narra o sucedido. Conta que partiram de Cafunfo às 6h00 e chegaram à zona do Tximbulagi por volta das 9h00. Nessa aldeia, o grupo de seis garimpeiros preparou o seu pequeno-almoço, composto por funje com peixe seco. Após a refeição, dirigiram-se ao guarda da Kadyapemba, Joaquim Kudiva. “Pagámos-lhe três mil kwanzas para permitir a nossa entrada na zona onde a SMC abandona o cascalho rejeitado.” Trata-se das terras processadas na lavaria industrial, que separa e retém os diamantes, sendo depois as areias e pedras transportadas para um local de depósito. Nas terras rejeitadas, os garimpeiros encontram por vezes pequenos diamantes sem valor comercial, chamados “sengas”, cujo preço varia, em média, entre 50 e 100 dólares cada.
“Começámos a trabalhar. Enchemos o saco e assustámo-nos com disparos. Era o Joaquim Kudiva, que recebeu o nosso dinheiro e permitiu a nossa entrada nos rejeitados, a disparar contra nós. Ao fugirmos, o Nelito apanhou um tiro na nuca e caiu no Rio Binda”, conta Mualucalo Didi.
“Parámos e corremos em direcção ao ‘Kadyapemba’, que se pôs em fuga. Informámos a polícia, que o deteve”, explica a testemunha.
O irmão do homem assassinado, Txibanga Simão, explica que o corpo de Nelito foi para a morgue do Hospital Regional de Cafunfo, que tem péssimas condições logísticas. Recorde-se que este hospital dá assistência aos municípios do Cuango, Caungula, Xá Muteba, Lubalo, Capenda Camulemba e Cuilo.
“Aqui, em Cafunfo, matam pessoas como se fossem animais. Como nos sentimos? O meu irmão não foi roubar. Esta semana perdemos quatro homens. Estão a acabar connosco como se fôssemos animais”, lamenta Txibanga Simão.
Por volta das 11h00 de ontem, a família ainda não sabia quando e como poderia enterrar o seu ente querido.
O tio da vítima, pastor António Bumba, da Igreja do Último Templo, relata a sua discussão com o director de operações da Kadyapemba, Manuel José Constantino. “Perguntei-lhe se a Kadyapemba e a Sociedade Mineira do Cuango vieram aqui para explorar diamantes ou para assassinar as pessoas.”
Num papel mal amanhado redigiu-se, ontem ao meio-dia, o termo de responsabilidade da Kadyapemba para com os familiares da vítima. “Eu, Manuel José Constantino, entreguei o valor de 250 000 aos familiares do malogrado Nelito Caxita, vítima de morte causada pelo nosso efectivo de nome Joaquim Kudiva, no dia 26.04.21.”
“Durante a sentada que tivemos, a Kadyapemba pediu-me para eu indicar um familiar para eles empregarem, como compensação adicional, no lugar do assassino deles. Eu rejeitei esta proposta, que é um insulto à nossa dignidade como família e seres humanos”, indigna-se o pastor.
Nelito Caxita deixa órfãos dois filhos.
Um tiro no pé
No dia em que Nelito Caxito foi morto, a 26 de Abril, também Yanvu João Modesto, de 25 anos, foi alvejado por um guarda da Kadyapemba com um tiro no pé esquerdo.
O seu pai explica como encarregou dois dos seus filhos, o seu xará e Jerónimo Modesto para empreenderem uma viagem, a pé, de várias horas, para comunicarem o falecimento do seu cunhado ao avô Nonó, que se encontrava na lavra, na zona de Caindende. Trata-se de uma família de camponeses.
Com efeito, os jovens levaram consigo uma mochila com dois pães e um rádio solar, como mantimentos para a viagem.
Na ponte sobre o Rio Binda, os irmãos foram abordados por um guarda. “O Kadyapemba perguntou-nos para onde íamos. Expliquei a nossa missão de ir comunicar o óbito ao avô”, diz Yanvu Modesto, o filho.
“O guarda disse ‘vou matar-vos aqui mesmo’ e perguntou o que tínhamos na pasta. Abri e mostrei o rádio e os dois pães. Sem mais conversa, ele pegou na arma, deu-me um tiro no pé e pôs-se em fuga”, conta a vítima.
Segundo o jovem, pouco depois a polícia surgiu no local e deteve o autor do disparo. Transportou o ferido para o Hospital Regional de Cafunfo. “No hospital, apenas recebi uma injecção e coseram-me onde entrou a bala, com dois pontos, sem anestesia. Nem sequer tive direito a um comprimido.”
Logo após esse breve e tosco tratamento médico, munido de um pau a fazer de muleta e acompanhado pelo seu pai, o ferido tem empreendido várias caminhadas, num vaivém entre a esquadra policial de Cafunfo e a base da Kadyapemba.
“Como pai, perguntei ao oficial de dia, na 2.ª Esquadra Policial de Cafunfo, quem vai assumir a responsabilidade pelo sucedido com o meu filho. Primeiro, respondeu-me que o hospital é do Estado, para justificar a falta de tratamento adequado do meu filho”, informa o pai. “Depois, disse-me que tenho de esperar até à vinda, a Cafunfo, do procurador municipal do Cuango, ou deslocar-me à sede municipal para apresentar queixa, sabendo ele que somos muito pobres e não temos como pagar o transporte para essas deslocações caras”, prossegue.
Já na base da Kadyapemba, o responsável com quem os Yanvu trataram deu-lhes outra volta. Remeteu-os à 2.ª Esquadra Policial, para obterem a assinatura de um termo de responsabilidade, de modo que a empresa de segurança possa assumir o pagamento do tratamento.
Passaram outra vez pela Polícia, que descartou qualquer responsabilidade em garantir o referido termo de responsabilidade.
Fonte da polícia local refere que “a Sociedade Mineira do Cuango tem um posto médico e nem sequer assume o tratamento do ferido”.
Novamente de volta à empresa de segurança privada, “a Kadyapemba, como compensação, entregou-nos comprimidos no valor de 1500 kwanzas (dois dólares) para o tratamento do meu filho. É o que nós valemos aqui em Cafunfo, enquanto seres humanos”.
De regresso ao hospital, no dia seguinte, “o médico perguntou-nos onde estavam os medicamentos, para ele poder tratar o meu filho. Só tínhamos aqueles comprimidos. Então, o miúdo não recebeu nenhum tratamento”, explica o pai.
“Estou cansado de caminhar com o meu filho, desde que apanhou o tiro, por cerca de oito quilómetros por dia para buscar tratamento.”
Morto à pancada
No dia 24 de Abril, a família de Romeu Bernardo, de 47 anos, recebeu a notícia da sua morte: foi espancado por um guarda da Kadyapemba, na zona do Tximato, a cerca de 20 quilómetros de Cafunfo.
A família seguiu o protocolo de informar a 2.ª Esquadra da Polícia Nacional, em Cafunfo. “Esta remeteu-nos para o município de Xá-Muteba, a mais de cem quilómetros de distância. Não tínhamos dinheiro para fazer essa viagem, que custa 24 mil kwanzas de ida e volta por passageiro”, refere o irmão da vítima, Alegria João.
Acontece muitas vezes as vítimas de maus-tratos e de homicídio nas zonas de garimpo serem residentes de Cafunfo, mas as agressões acontecerem no território pertencente ao município de Xá-Muteba, do outro lado do rio.
Com esta informação, a família de Romeu Bernardo juntou dinheiro e fez a viagem no dia seguinte, um domingo. Em Xá-Muteba, a polícia informou-os de “que não trabalha ao domingo e pediu-nos para regressarmos na segunda-feira”.
Na segunda-feira, já com efectivos policiais, bombeiros e elementos da investigação criminal, os familiares foram recebidos na base da Kadyapemba. “O matador, conhecido como Sapo [Alexandre Faustino], telefonou a um colega para identificar o buraco onde ele deixou o corpo do meu irmão e meteu-se em fuga”, conta Alegria João.
“Um dos guardas informou-nos que o seu colega torturou o nosso irmão até à morte e quebrou-lhe o pescoço. Colocou-o num buraco, mas o corpo ficou preso pelos braços e ele deixou-o assim, com a cabeça de fora do buraco. Foi assim que o encontrámos, já decomposto”, testemunha o irmão.
“Colocámos uma lona por cima da cabeça dele, e aquele buraco de garimpo onde o torturaram serviu de campa dele”, conclui.
Um dos jovens que estava a lavar cascalho com Romeu Bernardo relata que os seguranças da Kadyapemba, a quem os garimpeiros pagam para terem permissão para trabalhar, atacaram os seus sete colegas.
De acordo com depoimentos de um garimpeiro presente, “os outros fugiram, mas o Sené e o Romeu foram capturados e algemados, abraçados ao tronco de uma árvore”.
“O meu irmão soltou-se e pôs-se em fuga. Quando o capturaram, espancaram-no até à morte”, continua Alegria João.
Reconhecendo o crime, a Kadyapemba procedeu à entrega de 250 mil kwanzas à família da vítima: este é o preço de um caixão, no qual o corpo nem sequer pôde ser enterrado.
“A direcção da empresa Kadyapemba no Projecto Cuango vem por este meio proceder à entrega da quantia monetária no valor de duzentos e cinquenta mil kwanzas (250 000,00 akz) aos familiares do malogrado que em vida atendia pelo nome Romeu Bernardo. Vítima de agressão física pelo Sr. Alexandre Faustino, no pretérito dia 21/04/2021, na área do Delta-Zero (Base).” Esta declaração é assinada, com data de 26 de Abril, pelo director de operações de segurança da Kadyapemba, Manuel José Constantino.
“Depois de tudo isto, a empresa pede novo encontro connosco, para nós indicarmos um parente nosso para trabalhar no lugar do assassinado, como outro pagamento à família”, denuncia Alegria João.
“A empresa está a brincar connosco. Não queremos isso. Queremos justiça.”
Breve contexto
“A população de Cafunfo vive na área diamantífera, onde não há empregos. Mesmo no tempo colonial, o explorador não matava assim as populações”, desabafa fonte da administração local.
De forma recorrente, desde há muitos anos, o Maka Angola tem vindo a denunciar os actos de violência gratuita nas áreas diamantíferas, cometidos sobretudo por empresas privadas de segurança.
Uma vez que estas empresas pertencem sempre a altos comandantes militares ou a elementos da Polícia, o nível de impunidade tem sido alarmante.
Como denuncia o activista local Salvador Fragoso, “não temos assistido ao julgamento desses seguranças privados que cometem esses crimes hediondos”.
“Aqui, a procuradoria do Cuango só se mexe quando são casos de manifestantes, que chegam a tribunal e são julgados de forma célere. Também há os casos dos pobres, como o do jovem Miguel Sombo, que cumpre quatro anos de cadeia por causa de 100 kwanzas e um processo forjado pelo SIC”, comenta o activista.
Já inúmeras vezes denunciámos que as empresas privadas de segurança não têm autoridade para punir garimpeiros. Cabe-lhes apenas capturá-los nas áreas de concessão e entregá-los à Polícia Nacional. Como se vê em ambos os casos de Nelito Caxita e Romeu Bernardo, o padrão operacional tem sido o de cumplicidade dos guardas da Kadyapemba e das empresas antecessoras, que cobram dinheiro aos garimpeiros para que estes trabalhem em segurança.
“O reino de terror da Kadyapemba tem de acabar. Não estamos mais para morrermos à toa, mas para vivermos. Este é um tempo de paz”, diz o regedor-adjunto de Ngonga Ngola, Lourenço Xamuangala. Ngonga Ngola é uma comunidade que se encontra no interior da área concessionada à SMC, e tem sofrido bastante com isso.
“Essa empresa Kadyapemba tem de sair daqui. Estão a bater muito, a torturar muito. Aqui já só estamos a contar os mortos. Só este mês de Abril já contámos sete mortos. Não queremos mais ouvir falar o nome dessa empresa. Significa o terror para nós”, revela o regedor-adjunto Xamuangala. Os mortos aqui referidos eram todos residentes em Cafunfo.
Apesar de o garimpo ser uma actividade ilegal, os compradores que alimentam esta prática contam sempre com a protecção dos poderosos. Depois de tanta fanfarra pública com a Operação Transparência, em Cafunfo estão de volta os grandes compradores estrangeiros de diamantes, sobretudo libaneses, oeste-africanos e congoleses, agora sob a capa de comerciantes. As mesmas casas de compra de diamantes têm agora fachadas de lojas de venda de chinelas e quinquilharias – nas traseiras, prospera, como temos verificado, o comércio de diamantes.
Só os pobres e donos da terra se mantêm na condição de farrapos humanos, merecedores de mais nada além de pancada, miséria e morte.