Uma Trapalhada das Arábias: Sonangol e o Xeque Al-Maktoum

Angola tem vindo a clamar por investimento estrangeiro com vista ao relançamento da economia. O país mantém um extraordinário potencial ao nível dos recursos naturais e geoestratégicos, afirmando-se como uma grande atracção de investimento quer nacional quer estrangeiro. Então, o que falta?

Neste texto, o Maka Angola aborda a promessa recente de um investimento de 600 milhões de dólares feita pelo xeque Ahmed Dalmook Al-Maktoum, dos Emirados Árabes Unidos, para a retoma da construção do Terminal Oceânico da Barra do Dande, na província do Bengo. Depois de lhe ter sido estendido o tapete vermelho e após encontros com o presidente João Lourenço, o acordo com a Sonangol para a construção do terminal de armazenamento de petróleo foi desfeito, seguindo-se uma troca de acusações e culpas. Porquê?

Os cheques do xeque

Em Outubro passado, o presidente João Lourenço inaugurou duas fábricas de montagem de tractores e telemóveis na Zona Económica Especial de Viana, em Luanda. Trata-se de dois investimentos avaliados em 65 milhões de dólares, promovidos pelo xeque Ahmed Dalmook Al-Maktoum, que acompanhou o presidente nas inaugurações.

Os órgãos oficiais anunciaram que o xeque representava os Emirados Árabes Unidos (EAU). Desde 2018, o xeque tem andado por Angola a anunciar vários investimentos do Golfo em África. Apresenta as suas credenciais como membro da família reinante do Dubai, e aliás tem o mesmo apelido que o emir do Dubai, Al-Maktoum.

O xeque e a Sonangol

Em Novembro de 2019, a Sonangol e uma delegação dos EAU concordaram em retomar a construção de uma base de armazenamento de petróleo, com um investimento dos EAU no valor de 600 milhões de dólares. O projecto, localizado no Terminal Oceânico da Barra do Dande, tinha sido parado em 2016 e agora deveria entrar em operação em 2022, segundo o acordo divulgado.

O Memorando de Entendimento referente a tal projecto foi assinado pelo presidente da Sonangol, Sebastião Pai Gaspar Martins, e pelo xeque Ahmed Dalmook Al-Maktoum. Na ocasião, Al-Maktoum disse que o seu país vê Angola como um “país estratégico” e está à procura de oportunidades e investimentos em várias áreas.

Vejamos os factos e a posição de ambas as partes.

Embora pareça que o xeque fala em nome do Dubai ou dos EAU, a verdade é que o referido Memorando foi assinado com o Private Office [Gabinete Privado] do xeque, e não com uma estrutura oficial dos Emirados. Não é claro, portanto, se o xeque se representa a si próprio ou aos Emirados.

Mas, à parte estas questões formais, o projecto representava uma fantástica oportunidade para Angola, quer pela infra-estrutura que seria construída, quer pelo espírito novo das relações com o Golfo e a entrada de novos investidores em Luanda.

Xeque Al-Maktoum e o presidente João Lourenço

As trapalhadas

Eis que começa a trapalhada. A 21 de Maio de 2020, meio ano depois da assinatura do Memorando de Entendimento, o xeque Ahmed Al-Maktoum escreve a Gaspar Martins, presidente da Sonangol. Trata-se da resposta a uma missiva inicial da Sonangol.

Gaspar Martins queixa-se dos atrasos do xeque na implementação da sua parte do projecto e faz-lhe uma espécie de ultimato para cumprir com o memorando.

Ao reagir, o xeque traça um panorama desolador da posição da Sonangol no projecto.

Al-Maktoum afirma ter feito uma avaliação ao projecto apresentado pela Sonangol, cujo custo global ascendia a 1,6 mil milhões de dólares. Este valor tornaria o Terminal da Barra do Dande num dos mais caros alguma vez construídos em todo o mundo. Além de ter um preço extrapolado, segundo o xeque, o projecto apresenta claras deficiências técnicas e de engenharia, não respeitando a maioria dos requisitos internacionais de segurança.

Com o timbre do seu Gabinete Privado, o xeque envia cópias da sua resposta aos ministros de Estado para o Desenvolvimento Económico, assim como dos Recursos Naturais e Petróleo, respectivamente Manuel Nunes Júnior e Diamantino Pedro Azevedo. O embaixador dos Emirados Árabes Unidos em Angola, Khalid Al-Muhairi, também recebe uma cópia.

A Sonangol nega tais afirmações. O seu porta-voz, Dionísio Rocha, explica ao Maka Angola que “a Sonangol nunca referiu ao Private Office que o projecto custaria US$ 1,6 mil milhões. Muito pelo contrário”.

Segundo o seu porta-voz, a Sonangol informou reiteradamente o Gabinete Privado do xeque de que a continuidade do projecto se deveria focar na sua revisão, de forma a garantir um menor custo e maior atractividade para o mercado internacional.

Sobre as deficiências técnicas apontadas, a Sonangol esclarece “ter aproveitado o ensejo para fazer a revisão do projecto de engenharia – tal como recentemente o fez – de modo a ajustar o Terminal às normas e requisitos internacionais, bem como às perspectivas do mercado”.

Não bastando ser caro e estar mal concebido tecnicamente, de acordo com o xeque, o projecto estaria já envolvido também em custos e pagamentos inexplicáveis, provenientes do passado.

Ahmed Dalmook Al-Maktoum insurge-se contra um alegado pagamento da Sonangol ao famigerado China International Fund (CIF), no valor de 341 milhões de dólares, respeitante ao projecto. Al-Maktoum enfatiza que tal pagamento não está auditado, nem se sabe para que finalidade serviu, e não lhe foi mostrada qualquer documentação comprovativa.

Ainda referente a compromissos com os antigos empreiteiros (os que não terminaram a obra em 2016), parece existir uma responsabilidade da Sonangol no valor de 141 milhões de dólares. O xeque afirma, na carta, terem sido as suas próprias fontes a descobrir essa dívida do projecto, porque a Sonangol não fez constar essa informação entre os documentos que lhe remeteu. Descoberto esse passivo, a Sonangol confirmou, afinal, a sua existência.

Desse modo, para Al-Maktoum é impossível começar um projecto que tem à partida uma dívida obscura, totalizando 480 milhões de dólares.

Sobre o pagamento à empresa CIF, a Sonangol diz ao Maka Angola que as afirmações do xeque não correspondem à verdade. O valor despendido no âmbito do contrato com o CIF, insiste a petrolífera nacional, “está registado em sistema e, como tal, foi alvo de várias auditorias internas e externas a que, anualmente, a empresa está sujeita”. Além do mais, refere o porta-voz Dionísio Rocha:

“Tendo sido um contrato de construção, para além dos registos financeiros em sistema, os autos de medição e de entrega, e os próprios relatórios de auditoria dos nossos auditores externos, as infra-estruturas erguidas no sítio são prova do trabalho que foi realizado e foram elas, na verdade, a espoleta do interesse do Private Office em associar-se à Sonangol para concluir o Projecto: havia já uma parte considerável de obra erguida.”

Sobre a questão das dívidas a outras empreiteiras, geralmente subcontratadas do CIF, o mesmo porta-voz refere que, efectivamente, existiam problemas derivados da situação opaca do CIF e dos processos judiciais em curso. Todavia, nota, tal nunca constituiu um obstáculo à negociação entre a Sonangol e o xeque Al-Maktoum.

Ademais, o xeque queixa-se de ter envolvido no negócio a Emirates National Oil Company [Companhia Nacional de Petróleo dos Emirados] (ENOC). Na sua reclamação, o xeque fala de um estudo aturado de vários aspectos técnicos e peritos legais do projecto, feito pela ENOC, cujo resultado foi entregue à Sonangol. Diz que a petrolífera angolana nem sequer respondeu e que por isso a ENOC se desinteressou do projecto.

“A ENOC não se desinteressou do Projecto, pois na verdade não havia ainda um projecto para que tal acontecesse”, reage o porta-voz da Sonangol.

“O Projecto deveria ser realizado pela nova parceria, mas, na verdade, nunca chegou a acontecer, pelas razões acima indicadas. Em determinado momento, começamos a perceber que os parceiros que o Private Office dizia poder trazer (…) não se concretizavam”, continua.

Em sua defesa, o xeque tenta demonstrar como, apesar das confusões e atitudes que considera negligentes, tenta manter interesse no investimento. Revela ter descoberto que a capacidade original de armazenamento do projecto tinha sido drasticamente reduzida: de 1,7 milhões de metros cúbicos para 300 mil metros cúbicos. Ao manifestar a sua surpresa, Al-Maktoum diz ter havido arbitrariamente um aumento da capacidade para 500 mil metros cúbicos. Estas alterações unilaterais são impensáveis, escreve, sobretudo porque ocorrem sem sequer se tentar obter o acordo do parceiro.

A Sonangol, por sua vez, esclarece nunca ter determinado a capacidade de armazenamento para o projecto. Explica que a equipa do projecto anunciou publicamente, no dia da assinatura do Memorando de Entendimento (com o xeque), que o projecto teria apenas a capacidade necessária para atender a procura nacional. Conforme a demanda local e/ou regional, justifica, a sua capacidade seria gradualmente aumentada no futuro.

A acrescer a este suposto rol de surpresas e irregularidades, o xeque escreve ter descoberto também que a Sonangol não tinha seguido as regras de contratação pública na selecção dos seus parceiros. Mais uma vez, a Sonangol nega e refere que a relação que o xeque coloca em causa, que era com o CIF, já havia terminado.

Por fim, o xeque informa a Sonangol de que esta será responsabilizada por qualquer ruptura do Memorando e esclarece que o seu Gabinete Privado foi nomeado pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros dos Emirados Árabes Unidos, que pretende desenvolver as relações bilaterais entre os dois países.

Em finais do ano passado, ocorreu efectivamente a ruptura do Memorando, e não se chegou a acordo sobre a continuidade do projecto. De acordo com a Sonangol, o término do acordo foi cordial e consensual entre ambas as partes.

Por sua vez, no que diz respeito a Al-Maktoum: o xeque tem sido visto como um representante oficioso do Dubai para os negócios em África. No entanto, este mesmo xeque tem-se apresentado através de duas instituições privadas, a empresa Ameri e o seu designado Private Office, que anuncia uma parceria estratégica com o Ministério dos Negócios Estrangeiros dos EAU, em termos indefinidos.

A Ameri – mas não o xeque – já foi denunciada por um jornal norueguês em 2015, a propósito de um seu anterior administrador executivo, Umar Farooq Zahoor, supostamente ligado ao crime organizado.

Na altura, o xeque Al-Maktoum negou em absoluto qualquer transgressão, e nenhuma lhe foi imputada, de modo que o assunto não alcançou qualquer relevância adicional.

Comentário final

A análise desta situação não é unívoca. De um lado, a posição do xeque enquanto pessoa privada ou representante de um Estado não é clara. Simultaneamente, a Sonangol queixava-se de que ele estaria atrasado na assunção dos seus compromissos. Por outro lado, temos alguns factos infelizmente correntes em Angola. Projectos e obras sobrefacturadas, pagamentos milionários inexplicáveis, dívidas secretas e alterações unilaterais: no fundo, práticas habituais que têm lesado o Estado e roubado a expectativa de um futuro melhor para todos os angolanos.

Mesmo que o xeque não seja um exemplo de transparência, a sua carta toca em pontos fundamentais da gestão errática da Sonangol. E já concluímos que o presente tem de ser radicalmente diferente, para que o futuro também o seja.

É tempo de acabar com as trapalhadas e confusões. É tempo de “cortar a direito” e pôr fim aos pesos do passado que perturbam o relançamento da economia angolana.

Comentários