As Cartas Burlescas de José Eduardo dos Santos

Depois da Constituição atípica, José Eduardo dos Santos (JES) está a introduzir uma nova moda no direito angolano: as epístolas judiciais.

A partir de Barcelona, enquanto os seus antigos colaboradores submetidos a julgamentos criminais em Luanda apelam à intervenção justificativa exculpatória do antigo presidente, JES envia cartas…

Durante o julgamento do seu filho e de Valter Filipe referente ao desvio de 500 milhões de dólares, quando interpelado pela defesa do antigo governador do Banco Nacional de Angola, JES optou por enviar uma carta ao Tribunal Supremo onde decorria o julgamento.

Na missiva, que foi lida durante uma sessão do julgamento, JES terá escrito o seguinte: “Confirmo, sim, ter autorizado o governador Valter Filipe a tratar das formalizações desse fundo de investimento. E também pedi que o mesmo fosse ultra-secreto porque só depois é que seria formatado publicamente. (…) Também pedi ao governador Valter Filipe para entregar todo o processo ao actual Presidente da República e ao novo Executivo.” Na mesma carta, JES reforçaria que nada foi feito de forma oculta, adicionando que estavam em preparação os decretos presidenciais para a autorização e formalização de tudo.

Neste caso, embora não entrando em detalhes, JES estaria a apoiar o comportamento de Valter Filipe e do seu filho.

Contudo, o Tribunal Supremo, no âmbito do princípio da livre apreciação da prova, não valorizou as declarações de JES e acabou mesmo por condenar José Filomeno e Valter Filipe a penas de prisão.

Para simplificar, podemos concluir que a carta de JES não serviu para nada.

Agora, no julgamento de Manuel Rabelais, assistimos a uma repetição do método das cartas.

Na sua defesa judicial, Rabelais,  antigo dirigente do GRECIMA (o gabinete de marketing da Presidência da República), invocava as ordens superiores de JES, bem como o seu conhecimento, para justificar os movimentos financeiros e pagamentos a que terá procedido e pelos quais está acusado.

Mais uma vez, chega uma carta de Barcelona. No entanto, desta vez, a carta não confirma nada. JES limita-se a remeter os esclarecimentos sobre o tema para o então ministro-chefe da Casa de Segurança, general Kopelipa.

O método epistolar de JES não tem qualquer racionalidade jurídica e não deveria continuar a ser tolerado, pois está a transformar os julgamentos numa espécie de oráculo circense centrado na decifração dos escritos do antigo presidente da República. Na verdade, há dois problemas graves no procedimento das cartas: um de natureza processual e outro, bem mais grave, de natureza substantiva.

Em termos processuais, não tem qualquer sentido admitir estas cartas no decurso do caso judicial, uma vez que são meras declarações não sujeitas a contraditório e que nem sequer se consegue confirmar se vêm mesmo de JES ou não.

Ou JES é um interveniente processual, ou não é. Se é, pode depor presencialmente ou responder por escrito, embora as respostas por escrito tenham de obedecer a procedimentos formais, com envio de certificado e possibilidade de todas as partes colocarem perguntas.

Tal como tem acontecido, é uma pura brincadeira. Talvez não seja ilegal enviar estas cartas, mas na realidade elas não têm qualquer valor como prova.

Acima de tudo, o problema que a actividade epistolar de JES levanta é substantivo e tem a ver com a natureza destes processos instaurados contra altas figuras do seu antigo governo.

Seja como for, não é possível julgar Zenú, Valter Filipe, Rabelais e outros do mesmo coturno que se sigam, sem a presença de JES.

O presidente da República era o titular do poder executivo e, como se tem estado a ver ao longo das defesas apresentadas, todas as decisões importantes passavam por JES.

Só ele poderá explicar a razão de tais decisões e também, em última instância, é ele o responsável por todos os actos criminosos dos seus subordinados – seja porque mandou que os fizessem, seja porque tomou conhecimento deles e nada fez para os impedir ou invalidar. É impossível julgar os altos dignitários de JES sem julgar o próprio JES.

Acresce que, neste momento, assistimos a uma farsa em relação ao comportamento destes altos dirigentes. Rabelais afirma que os seus supostos crimes não são mais que o resultado das ordens de José Eduardo dos Santos. Este, por sua vez, vem dizer que o general Kopelipa é que sabe. Kopelipa, quando interrogado sobre o Chinese Investment Fund (CIF) e eventuais crimes cometidos nesta empresa, remete tudo para Manuel Vicente. Possivelmente, completando o círculo perfeito, quando interrogado no futuro, Vicente não terá dúvidas de que se limitou a cumprir ordens de José Eduardo dos Santos.

Cada um remete para o outro, mas no final alguém terá de ser responsável. E, num sistema de poder centralizado, em que a própria Constituição criou a figura do presidente imperial, é difícil, se não impossível, não atribuir as mais elevadas responsabilidades a JES.

Tem de proceder-se a uma revisão profunda desta forma fragmentária e atomizada com que a Procuradoria-Geral da República (PGR) conduz o combate à corrupção. Se esta revisão não acontecer, há o perigo de não se conseguir evitar uma trapalhada monumental.

É fundamental uma aproximação sistémica, integrada e ciente da complexidade das teias económicas e financeiras que foram criadas, reconhecendo-se que cada um dos fios emana do próprio José Eduardo dos Santos. Sem se confrontar judicialmente José Eduardo dos Santos, não é possível fazer justiça rápida e eficaz. Urge pôr fim ao folclore das cartas e enfrentar sem contemplações, em termos judiciais, tal como já foi feito politicamente, a questão última da responsabilidade da corrupção. Chame-se José Eduardo dos Santos à barra do tribunal.

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