A Injustiça e os Generais Demolidores

O tenente-general Rui Fernandes Lopes Afonso, comandante da Região Militar de Luanda, saiu do seu gabinete com mais de uma centena de soldados para uma operação de cerco e demolição, sem ordem judicial, de casas e vedações no Lar do Patriota, em Luanda, num terreno entregue provisoriamente a outros generais. Ao mesmo tempo, destruíram também as construções e quintais de um terreno contíguo, no bairro do Honga, que a justiça tinha entregado provisoriamente aos camponeses.

No dia 2 de Dezembro, os comandados do tenente-general Lopes combinaram forças com um dispositivo maior da Polícia de Intervenção Rápida (PIR), polícia regular, brigada canina, Serviço de Investigação Criminal (SIC) e fiscais da administração local. Com meios militares aparatosos, destruíram cerca de oito residências e seis quintais no bairro do Patriota, e mais seis casas e três quintais no bairro vizinho do Honga, segundo dados provisórios prestados pela presidente da Associação Anandengue, Santos Mateus Adão.

Estes meios militares e a sua intervenção foram justificados como impondo o cumprimento de uma sentença judicial exarada pela juíza Alice Efraim Rodrigues a 10 de Novembro de 2020, na 1.ª secção da Sala do Cível e Administrativo do Tribunal Provincial de Luanda. De facto, no âmbito do processo 3400/ 2020-A, foi decretada uma restituição imediata e provisória da posse do terreno do Patriota (mas não do bairro do Honga), na sequência de uma providência cautelar interposta nos termos dos artigos 393.º e seguintes do Código do Processo Civil.

Essa providência foi requerida por sete alegados titulares de direitos sobre o terreno, que são:

  1. Fundadores do Lar do Patriota, representados pelo presidente do seu Conselho de Administração Jorge Inácio Chiquengue “general Sacrifício”;
  2. DJJ – Empreendimentos Lda., representada pelo general Julião Mateus Paulo “Dino Matross”, actual deputado do MPLA à Assembleia Nacional;
  3. Kavapechinu, SA, representada pelo tenente-general Vasco Júnior Sabino da Silva;
  4. Camilo Octávio Pires Ferreira, o empreiteiro que disponibilizou os equipamentos de demolição;
  5. Francisco João da Costa;
  6. BFM Projectos SA, representada pela cidadã Inês Sousa Costa;
  7. Artur Mendes Henriques

Os requeridos da providência foram a Associação Anandengue, constituída por camponeses, e outros cidadãos particulares. Existem outras acções judiciais a correr nos tribunais acerca desta disputa, em que ambas as partes se arrogam direitos substantivos sobre os terrenos. Esta providência foi decretada sem audição da parte contrária, de acordo com o artigo 394.º do Código do Processo Civil.

As demolições

Os advogados da Associação Anandengue, liderados por Sebastião Assurreira, estiveram presentes, no período da tarde, durante a operação de demolições. “O escrivão Francisco da Costa transmitiu-nos apenas, de forma verbal, que a ordem de demolição foi dada pela juíza Alice Efraim Rodrigues”, explica Sebastião Assurreira.

Para além do terreno em disputa, Assurreira assevera que um outro terreno adjacente, não incluído na decisão judicial e ocupado maioritariamente por camponeses, também foi abrangido pelas demolições.

“O camarada deputado Dino Matross estava no terreno a comandar pessoalmente o espancamento de camponeses, a queima dos seus haveres e ainda mandou soltar os cães para correr com eles. Nessas operações foram detidas seis camponesas, que foram levadas ao Comando da Região Militar de Luanda, de onde foram depois soltas”, denuncia o advogado.

Essas camponesas encontravam-se no bairro Honga, como ocupantes de um terreno de 14 hectares que lhes havia sido provisoriamente restituído por ordem judicial. De facto, a 19 de Fevereiro de 2014, a juíza Ana Raquel Pitra ordenou, nos autos de providência cautelar de restituição provisória de posse, que fosse devolvida à Associação Anandengue uma área de 14 hectares no bairro Honga. Trata-se do Processo nº 106/12-B, em que a requerida era a Sociedade Fundadores do Lar do Patriota, Empreendimentos e Participações SA. Passado um ano, a restituição ainda não tinha sido realizada, tendo a mesma juíza insistido, com uma nota dirigida ao comandante provincial da Polícia Nacional, para fazer cumprir a referida entrega judicial.

Os factos jurídicos acima expostos levantam várias questões, nomeadamente quanto à prática corrente de actuação ilegal e violenta das elites dirigentes do Estado.

Em primeiro lugar, não se percebe o que fazem as Forças Armadas Angolanas (FAA) no meio de operações que deviam ser estritamente policiais. Constitucionalmente, as Forças Armadas têm como função primacial a defesa militar do país.

A defesa nacional é definida, pela Constituição, como “a garantia da defesa da soberania e independência nacionais, da integridade territorial e dos poderes constitucionais e, por iniciativa destes, da lei e da ordem pública, o asseguramento da liberdade e segurança da população, contra agressões e outro tipo de ameaças externas e internas, bem como o desenvolvimento de missões de interesse público.”

Não se vê onde andar a cercar e a demolir terrenos em resultado de disputas entre particulares angolanos se enquadra na missão e objectivos das FAA. Mas, na verdade, este desvio de funções das FAA não é o aspecto mais significativo deste caso.

O fundamental é que a decisão da juíza Alice Rodrigues em parte alguma autorizou ou mandou demolir o que quer que fosse.

Na verdade, a juíza apenas decretou a “restituição imediata e provisória da posse (…) dos terrenos identificados”. Restituição provisória da posse não é demolição de casas, que por definição é um acto bem definitivo, e não provisório…

Esta providência de restituição, prevista do Código de Processo Civil, é meramente temporária, até se chegar a alguma conclusão nas acções principais sobre quem tem direitos sobre os terrenos. Não confere nenhum direito absoluto.

Segundo o analista jurídico do Maka Angola, Rui Verde, “aquele a quem é restituída provisoriamente a posse pode exercer os direitos correspondentes ao exercício do direito de propriedade (artigo 1251.º do Código Civil), mas tem de preservar a propriedade, não podendo destruir aquilo que lhe foi temporariamente entregue”. “Existe um dever de cuidado e manutenção da propriedade e não lhe assiste a possibilidade da destruição, senão não teríamos uma restituição provisória, mas definitiva”, acrescenta.

Por estas razões, é evidente que o comandante da Região Militar de Luanda, tenente-general Rui Lopes Afonso, e suas tropas agiram de modo ilegal e foram muito além da ordem do tribunal. Na realidade, ao promover ou proteger demolições, violaram o despacho judicial.

Um outro aspecto surpreendente refere-se aos autores e actores principais desta história. Basta referir dois: o conhecido deputado Dino Matross, que surge como representante da sociedade comercial DJJ – Empreendimentos, Lda., e o tenente-general Vasco Júnior Sabino da Silva, que aparece como representante da sociedade comercial Kavapechinu, Lda.

Comecemos pelo óbvio. Dino Matross é deputado à Assembleia Nacional pelo MPLA. Nesses termos, está estritamente proibido de exercer funções em sociedades comerciais. Determina o artigo 149.º, n.º 2, b) da Constituição da República Angolana: “O mandato de Deputado é (…) incompatível com: O exercício de funções de administração, gerência ou de qualquer cargo social em sociedades comerciais e demais instituições que prossigam fins lucrativos.” O incumprimento desta norma acarreta a perda de mandato: “O Deputado perde o mandato sempre que: Fique abrangido por algumas das incapacidades ou inelegibilidades previstas na Constituição e na lei.” (artigo 152.º, n.º 2, a) da CRA).

General Dino Matross

É claro e é óbvio que Dino Matross está a agir à margem da Lei e deve deixar de ser deputado imediatamente.

O tenente-general Vasco Júnior Sabino da Silva permanece no activo. Não se vê o que faz a representar uma empresa comercial.

Portanto, temos as FAA a desempenharem funções que não lhe estão atribuídas pela Constituição, demolições ilegais não ordenadas pelo tribunal, um deputado a exercer funções comerciais, o que é vedado pela Constituição, e um médico-militar da presidência nas mesmas actividades.

O sargento e o general

Quem pagou a factura mais elevada das demolições dos generais foi o primeiro-sargento José Carmo Luís, do Comando do Exército das FAA. A sua casa, anexo e vedação, com mais de 120 metros quadrados, foram demolidos, e o seu mobiliário e materiais de construção foram roubados: “Vi os fiscais e membros da administração do Distrito do Talatona a roubarem os meus bens, como mobílias, televisores e materiais de construção.”

Inconformado com a operação e munido de documentação oficial que o habilita como superficiário do terreno onde construiu, dirigiu-se ao general comandante das demolições, o já referido Rui Lopes Afonso, para solicitar a autorização judicial das demolições. Este não teve qualquer contemporização e deu ordem de prisão ao sargento Carmo Luís, que esteve detido 48 horas e só foi libertado com termo de identidade e residência. É acusado de dois crimes, um de conduta indecorosa e outro de ofensas a Superior, ambas punidas pela Lei dos Crimes Militares.

“Estou profundamente chocado. Não entendo que tipo de justiça temos em Angola, que ordena um general a demolir casas de um cidadão com documentação devidamente legalizada, para entregar o terreno a generais para o mesmo fim, a construção de residências”, lamenta o primeiro-sargento. “Não é função de um general das FAA comandar demolições num caso entregue à justiça civil”, acrescenta.

O primeiro-sargento José Carmo Luís afirma não ter medo de fazer afirmações públicas sobre o sucedido: “Se o governo já me despojou de tudo e deixa-me ao relento, que mais posso temer? Ao menos, agora, na cadeia dormirei debaixo de um tecto.” “Mas assim os terrenos do Patriota são apenas para os generais que já têm muitas casas cada um?”, questiona-se ainda.

Além de se adivinhar um comportamento prepotente por parte do general Rui Lopes Afonso, não se entende a aplicação da Lei dos Crimes Militares (Lei n.º 4/94 de 28 de Janeiro) a este caso. O sargento Carmo Luís é militar, logo, abrangido pelo artigo n.º 2 dessa lei. Todavia, as condutas referidas não se referem ao exercício de funções militares, mas ao exercício da condição de cidadão, em defesa dos seus interesses. Como nota Rui Verde, “qualquer conduta deveria ser contemplada como um crime comum (artigo 3.º, n.º 1 da referida Lei dos Crimes Militares) e não como militar”. O encontro entre o sargento e o general não aconteceu durante qualquer actividade militar nem o simples pedido de uma ordem judicial se realizou enquanto tal.

Generais com ouvidos de mercadores

Os generais ora citados fazem ouvidos de mercador à máxima do presidente João Lourenço segundo a qual “ninguém é rico ou poderoso demais para se furtar a ser punido, nem ninguém é pobre demais ao ponto de não poder ser protegido”.

Temos aqui um caso claro em que o exército é chamado a intervir ilegalmente para punir cidadãos pobres em defesa dos interesses privados de um grupo de generais e contra uma decisão judicial. E agora? Resumindo, os abusos e prepotências continuam em alta. O exercício de uma cidadania activa e vigilante é cada vez mais uma necessidade, se efectivamente queremos deixar para trás o passado e construir um futuro novo.

Comentários