Desordem nos Médicos: A Prepotência da Ex-Bastonária
Em Angola, há mais de 7600 médicos inscritos na Ordem dos Médicos. Pouco mais de 4000 médicos – a maioria – destituíram a bastonária, Elisa Pedro Gaspar.
Por sua vez, a médica Elisa Pedro Gaspar finge não perceber que foi demitida pelos seus pares e cola-se à cadeira do poder com uma prepotência tão extraordinária, que parece imitar Donald Trump. E impede mesmo os seus colegas de entrarem na sede da Ordem dos Médicos, com o apoio equivocado das forças policiais.
Mas por que razão os médicos não permitiram à ex-bastonária que chegasse sequer a meio do seu mandato de quatro anos? Elisa Pedro Gaspar foi eleita pelos pares em Março de 2019. Os médicos apresentaram três razões para o seu descontentamento: acusaram a médica de violação sistemática dos estatutos da Ordem, de falta de transparência na gestão dos recursos e de “não alinhamento com os interesses da classe”. São várias as provas factuais que elencaram para sustentar esses argumentos, incluindo actos de nepotismo.
Sobre a violação sistemática dos estatutos, os médicos apontam a vacatura de vários órgãos previstos. A nível nacional, a ex-bastonária alegadamente não permitiu o preenchimento das três vagas do Conselho Executivo Nacional. Este conselho é o órgão colegial de governo da Ordem, sob presidência do ou da bastonária. Os três membros são designados, de forma paritária, pelos conselhos regionais. Ao assumir esta posição, a ex-bastonária passou a ter todos os poderes executivos, qual Constituição de 2010.
Todavia, dos quatro conselhos regionais, apenas estão criados os do Norte, que representa mais de 70 por cento dos médicos inscritos, e um do Sul, que representa certa de sete por cento dos associados. Faltam o Centro e o Leste. Por outro lado, os quatro conselhos regionais formam a plenária dos Conselhos Regionais, que é o órgão central e colegial de representação dos médicos.
Ademais, a Ordem também não tem um Conselho Fiscal Nacional, conforme prevêem os estatutos, para monitorar os actos de gestão da liderança da Ordem. Esse órgão é composto por cinco membros e deve incluir os quatro presidentes dos conselhos fiscais regionais, assim como o presidente eleito pelo plenário dos conselhos regionais. Não havendo plenário, não há presidente do Conselho Fiscal.
Ao engendrar estas vacaturas, a ex-bastonária chamou a si poderes absolutos. Foi eleita para governar sozinha.
Importa ressaltar ainda, pela tragédia a que se refere e pelo impacto público que teve, o “desalinhamento evidente” da médica Elisa Pedro Gaspar sobre a violenta morte do médico Sílvio Dala numa esquadra policial. A 1 de Setembro passado, o médico conduzia sem máscara, depois de mais de 30 horas seguidas de trabalho no Hospital Pediátrico de Luanda, quando a polícia o interpelou, tendo-o levado para a esquadra e submetido a espancamento até à morte. Os médicos escreveram a apelar a “uma investigação isenta, tendente a esclarecer as reais circunstâncias em que ocorreu a morte do dr. Sílvio Dala”. Em contrapartida, “a bastonária da Ordem, a quem compete em primeira instância defender os interesses dos médicos, furtou-se a subscrever esta solicitação, distanciando-se assim do dever de ‘agir solidariamente em todas as circunstâncias na defesa dos interesses colectivos’”.
Os médicos organizaram uma manifestação solidária, honrando a memória do colega e demandando justiça. A bastonária, perante um tal caso de crime hediondo perpetrado pelas forças da autoridade contra um membro da “sua” Ordem, manteve a posição, e tratou os manifestantes por “arruaceiros”.
Com apoio institucional, deu ontem uma entrevista estapafúrdia à TPA, onde revelou uma falta de educação clamorosa. Foi à televisão falar sobre como, enquanto bastonária, criou condições para colocar papel higiénico e pensos (de higiene feminina) nas casas de banho. É para isso que serve uma bastonária de uma Ordem com tamanha importância para a saúde dos angolanos?
Elisa Pedro Gaspar comporta-se como uma ditadora (veja-se o episódio em que chamou a polícia para afastar médicos da sede da Ordem, relatado há dias neste portal). Afinal, de onde retira tanto poder para desafiar o civismo, a urbanidade, o bom senso e o respeito pela decisão maioritária dos colegas que já não a querem? Há mais de um mês que se recusa a abandonar o cargo que já não é seu. Porquê?
Vale-nos o exemplo dos médicos que não querem continuar a ver a instituição que os representa a apodrecer.
Os factos límpidos
Os factos concretos são límpidos e claros. Pelas 10 horas de 17 de Outubro de 2020, reuniu-se a Assembleia-Geral Extraordinária da Ordem dos Médicos de Angola na sala de conferências de um hotel em Luanda, sob o lema “não fique em silêncio”. Segundo a acta que comprova essa assembleia, assinada pelos médicos Aurélio Joaquim, Katiana Antas, Stela Novais, Julião Silva, Arlete Isaac e Rosalon Pedro, em representação da Mesa da Assembleia e do seu Secretariado, a convocação foi realizada com 30 dias de antecedência, precedida de vasta divulgação pública, e tinha como ponto único da ordem de trabalhos a destituição da bastonária Elisa Gaspar.
Na ocasião, o Secretariado da Assembleia verificou e confirmou o quórum deliberativo, afirmando a sua existência. Após considerar que tinha condições para se reunir e deliberar validamente, foram apresentados pareceres de advogados asseverando a legitimidade da Assembleia e passou-se à discussão da destituição da bastonária, altura em que foram aduzidos variados argumentos substantivos que justificaram tal destituição. Tal deliberação foi tomada por unanimidade. Nem uma abstenção nem um voto contra, e foi-lhe conferida efeito imediato.
Misteriosamente, depois desta deliberação massiva, a bastonária fingiu que nada se passava e ignorou a deliberação da assembleia.
Gabinete Jurídico é tribunal
Então, no dia 19 de Outubro de 2020, surge um comunicado de imprensa do Gabinete Jurídico da Ordem dos Médicos, subscrito pelos juristas Gabriel Correia e Laurindo Martírio. Pelo que se percebe da sua leitura, estes juristas declaram a assembleia inválida, por estar “em desconformidade com os Estatutos e por ser realizada à revelia” (não se sabe à revelia de quem). Além disso, o comunicado refere o incumprimento de um despacho que ordenava a suspensão (não se percebe de quem), assinala ainda a ilegitimidade do Conselho Regional Norte da Ordem para convocar uma assembleia e a não-participação de membros de Cabinda, Zaire, Uíge e Bengo. Finalmente, aduz-se ainda que não houve clarificação dos elementos de prova que justificassem os fundamentos da destituição. Face a isso, os juristas do gabinete da bastonária destituída declaram que a senhora continua em funções.
Há uma primeira questão a salientar. Houve uma Assembleia-Geral Extraordinária da Ordem dos Médicos. Ela teve lugar num espaço e num tempo com a presença de várias pessoas e gerou um documento com assinaturas autenticadas: uma acta. Ora, se a convocatória foi ilegítima, se a destituição não teve fundamento ou se essa assembleia teve alguma irregularidade, não cabe ao Gabinete Jurídico da bastonária decidir, mas sim aos tribunais.
Perante uma deliberação com que não se concorda, o que há a fazer é recorrer aos tribunais para anular essa deliberação. Os juristas de um gabinete não têm poder judicial para anular ou desconsiderar uma Assembleia-Geral da Ordem, mesmo que a considerem ilegal. Isso é evidente.
Portanto, o atrevimento legal da atitude do Gabinete Jurídico da Ordem dos Médicos, pretendendo substituir-se aos tribunais é, no mínimo, absurdo.
Debrucemo-nos agora sobre os pontos levantados pelos juristas da bastonária destituída, para ver, numa análise meramente lógica, se lhes assiste alguma razão na argumentação com que querem evitar a referida destituição.
Comecemos por ver quem tem legitimidade para destituir a bastonária e, depois, quais os procedimentos para que tal aconteça.
O próprio Estatuto da Ordem dos Médicos dá resposta a essa questão no seu artigo 21.º n.º 1, quando estabelece que “o mandato dos órgãos pode terminar por deliberação das respectivas assembleias (…)”. Depois, os restantes números desse artigo (n.os 2 e 3) explicitam os procedimentos a seguir, explicitando que a “assembleia que destituir a totalidade ou a maioria dos membros de algum dos órgãos deve eleger uma comissão provisória que transitoriamente os substitua até às eleições, que se devem realizar no prazo máximo de noventa dias”.
Obviamente, tal disposição aplica-se à destituição da bastonária, formalmente designada como presidente da Ordem dos Médicos. Este cargo constitui um dos órgãos enunciados por esse artigo (veja-se o artigo 17.º, que estipula sobre o/a bastonário/a, incluído no mesmo capítulo e secção do artigo 21.º, o qual define o método de destituição).
Consequentemente, cabe a uma Assembleia-Geral Extraordinária, nos termos do artigo 21.º dos Estatutos da Ordem dos Médicos, destituir a bastonária.
Alguns mais distraídos poderão anotar que a Assembleia-Geral não surge como órgão da Ordem dos Médicos (os órgãos estabelecidos no artigo 17.º). Nem isso tem de acontecer. Na verdade, vários artigos ao longo do Estatuto fazem referência à Assembleia-Geral, como os artigos 19.º e 20.º.
Além disso, é preciso notar que a Ordem dos Médicos é uma instituição pública de natureza associativa (artigos 1.º e 2.º dos Estatutos). Nesse sentido, também lhe vê aplicada directamente a Lei de Bases das Associações Públicas (Lei n.º 3/12, de 13 de Janeiro).No seu artigo 18.º, essa lei estipula que toda e qualquer associação pública tem de ter uma assembleia representativa. Carlos Feijó e Diogo Freitas do Amaral debruçam-se sobre este assunto na página 321 do seu livro sobre Direito Administrativo Angolano, de 2016.
Sendo assim, não restam dúvidas de que a Ordem dos Médicos tem uma Assembleia-Geral contendo potencialmente todos os seus membros ou representativa destes, a quem atribuiu poderes para destituir o/a presidente da Ordem (bastonário/a). Essa Assembleia deve funcionar de forma democrática, conforme a Lei de Bases das Associações Públicas.
A Convocatória do Conselho Regional Norte
A que em seguida se coloca é a da convocatória da Assembleia-Geral da Ordem dos Médicos e do papel preponderante do seu Conselho Regional Norte.
Não havendo uma norma expressa sobre a convocatória da Assembleia-Geral nos Estatutos, poderemos fazer uma interpretação extensiva adaptada dos artigos 37.º e 38.º, que se referem às Assembleias Regionais, considerando que esta norma também se aplica à convocatória das Assembleias-Gerais. Assim, a convocatória terá de ser feita sempre que 30 por cento dos membros da Ordem o requeiram e consistirá num aviso convocatório dirigido aos membros e publicado em jornal diário ou órgão de comunicação semelhante, com a antecedência mínima de 15 dias, devendo a dita convocatória indicar a hora e o local da reunião, bem como a ordem dos trabalhos. Tanto quanto consta da acta, foi esse o procedimento seguido, com antecedência de 30 dias e ampla divulgação. Portanto, quanto à convocatória, não se vê ilegalidade. Também o pedido de convocatória obedeceu aos trâmites previstos nos Estatutos, pois, segundo o comunicado emitido no final da Assembleia-Geral, foi feito por mais de 30 por cento dos membros inscritos na Ordem. Não interessa se são do Norte, do Sul, do Este ou do Oeste. Bastam 30 por cento dos membros inscritos na Ordem, independentemente da sua proveniência geográfica.
Consequentemente, temos uma Assembleia convocada em conformidade com os regulamentos e a funcionar nos termos legais. Resta analisar o acto concreto de destituição.
Dispõe o artigo 21.º, n.º 1 que “o número total de votantes seja superior a 50% dos médicos inscritos” para a destituição ocorrer. Estando inscritos pouco mais de 7600 médicos na Ordem, o número total de vontades expressas de destituição tem de ser igual ou superior a 3800. Segundo o comunicado final da Assembleia-Geral, 4026 médicos subscreveram a deliberação, um número mais do que suficiente para destituir Elisa Gaspar.
As referências que são feitas a médicos de Cabinda, Zaire, Uíge e Bengo merecem todo o respeito do ponto de vista da sua dignidade pessoal e profissional, porém são irrelevantes para alterar os resultados a que se chegou. Trinta por cento dos membros da Ordem requereram a realização de uma Assembleia-Geral Extraordinária, e mais de metade subscreveram a destituição da bastonária. É quanto basta.
Em resumo, Elisa Gaspar foi mesmo destituída do cargo de bastonária, e não é um comunicado do seu Gabinete Jurídico que tem poder para determinar o contrário. Se discorda do processo, tem de recorrer aos tribunais.
Entretanto, os representantes eleitos na Assembleia devem ocupar as instalações e começar a exercer a sua actividade na Ordem dos Médicos. Caso encontrem resistência, devem, eles sim, chamar a força pública. A polícia deve agir para fazer cumprir a deliberação dos médicos, e não o contrário. Há uma deliberação válida que tem efeitos imediatos. O Ministério da Saúde, que controla a dotação orçamental do Estado destinada à Ordem dos Médicos, deve pronunciar-se publicamente sobre a decisão colectiva e soberana dos médicos. Não pode ficar calado.