Um Morto, Três juízes e Um Enterro em Benguela
A 26 de Agosto de 2020, Benilde Malé, juíza de direito a exercer funções na Sala do Civil e Administrativo do Tribunal da Comarca de Benguela, deferiu, no âmbito do processo 86/2020, uma providência cautelar não especificada.
Nessa providência, os autores Edilson Lacerda, Nelma Lacerda e Sílvia Lacerda, filhos de Carlos Lacerda, entretanto falecido, requeriam, contra a Comissão Provincial de Saúde Pública e o Gabinete Provincial de Saúde de Benguela, que fosse suspenso provisoriamente o enterro e a cerimónia fúnebre do pai, e ainda que o corpo fosse disponibilizado pelas referidas autoridades para realização de autópsia. O fundamento do requerimento dos filhos era o aparente tratamento negligente dado no Hospital de Polícia, no Município da Catumbela, a Carlos Lacerda, do qual resultou a sua morte. O hospital afirmava que Carlos Lacerda morrera de Covid-19, enquanto os familiares asseguravam que a morte se devera à falta de condições e de tratamento no hospital. Para provar o seu ponto e exigir o apuramento das responsabilidades, naturalmente a família desejava que a autópsia fosse feita antes do enterro. Para tal, entregou o devido requerimento ao tribunal.
Numa sentença bem elaborada, a juíza decidiu a favor da família de Carlos Lacerda e determinou que o enterro e a cerimónia fúnebre fossem suspensos e a autópsia, realizada. A decisão era clara e compreensível: a 26 de Agosto último, o tribunal mandou suspender um enterro e realizar uma autópsia.
Dispõe a Constituição da República de Angola (CRA), no seu artigo 177.º, n.º 2, o seguinte: “As decisões dos tribunais são de cumprimento obrigatório para todos os cidadãos e demais pessoas jurídicas e prevalecem sobre as de quaisquer outras autoridades.” E o n.º 3 do mesmo artigo acrescenta: “A lei regula os termos da execução das decisões dos tribunais, sanciona os responsáveis pelo seu incumprimento e responsabiliza criminalmente as autoridades públicas e privadas que concorram para a sua obstrução.”
Não existem dúvidas de que os tribunais são um órgão de soberania (artigo 174.º da CRA) e de que as suas decisões obrigam tudo e todos, sobrepondo-se a quaisquer outras tomadas de posição das restantes autoridades. Como é sabido, uma sentença judicial só deixa de vigorar se for revogada por uma sentença de um tribunal superior, decidida num processo adequado, ou se surgir uma lei que de alguma forma a anule. Além disso, o presidente da República, nos termos do artigo 119.º n) da CRA, pode indultar e comutar penas. A regra geral é que as sentenças prevalecem na ordem jurídica com a força máxima e apenas em circunstâncias muito estritas e previstas na Constituição ou na Lei podem ser afastadas.
Ora, o que está a suscitar celeuma entre a opinião pública é uma aparente violação desta “sacralidade” das sentenças judiciais.
Com data de 28 de Agosto de 2020, surge do gabinete do juiz conselheiro presidente do Tribunal Supremo e do Conselho Superior da Magistratura Judicial (CSMJ) um ofício dirigido à ministra da Saúde. O documento tem o timbre do gabinete do presidente do CSMJ e parece responder a um ofício dirigido pela ministra a este órgão. Nesta resposta, vai transcrito um despacho de Joel Leonardo, juiz conselheiro presidente do Tribunal Supremo e do CSMJ, acerca do enterro de Carlos Lacerda, que havia sido suspenso por sentença judicial dois dias antes. Lacerda é referido como falecido por Covid-19. Conforme mencionado, havia sérias dúvidas sobre se Carlos Lacerda havia morrido devido ao novo coronavírus, o que conduziu à decisão judicial de suspender o enterro e de se proceder à autópsia. Também não se compreende o papel da ministra da Saúde no meio desta história. Se não gostou da decisão do tribunal, devia ter solicitado ao Ministério Público que recorresse da decisão, ao invés de pedir satisfações ao líder dos juízes. Mas isto são especulações, uma vez que não tivemos acesso ao ofício da ministra, somente à resposta do juiz conselheiro presidente.
A resposta contém um despacho de Joel Leonardo. Nesse despacho, não se percebe em que qualidade está a agir o presidente do Supremo e presidente do CSMJ, pois afirma que, pelo facto de a “esposa e um dos filhos do falecido testado positivo [de Covid-19] entendemos que a saúde pública (…) não deve ser posta em causa por opiniões…”. Nessa medida, Leonardo ordena que o “sepultamento do falecido deve ocorrer imediatamente de acordo com as convenções internacionais e outras directrizes traçadas pela OMS”.
Portanto, temos aqui um despacho administrativo a revogar uma decisão judicial. Não se percebe o fundamento legal, nem a justificação constitucional para tal atropelo do Estado de Direito e da Constituição. É invocada uma resolução do CSMJ, mas é evidente que nenhuma resolução tem o poder de afastar a Constituição, a lei ou qualquer decisão judicial.
Fomos averiguar a existência de alguma norma legal que permita ao presidente do Tribunal Supremo e do CSMJ revogar sem qualquer procedimento de recurso ou similar, uma sentença judicial, como Joel Leonardo aparentemente fez. A Lei Orgânica sobre a Organização e o Funcionamento dos Tribunais da Jurisdição Comum, Lei n.º 2/15, de 2 de Fevereiro, não contém qualquer norma que confira esses poderes ao presidente do Tribunal Supremo; o Estatuto dos Magistrados Judiciais, Lei n.º 7/94, de 29 de Abril, também não; o artigo 30.º da Lei n.º 13/11, de 18 de Março, Lei Orgânica do Tribunal Supremo, que estabelece as competências do presidente do Tribunal Supremo, também não lhe reconhece nenhum poder de avocação e intervenção directa com vista à revogação de sentenças judiciais; o mesmo acontece com a Lei n.º 14/11 de 18 de Março, sobre o Conselho Superior de Magistratura no seu artigo 35.º).
Não vislumbrámos qualquer base legal que permita ao presidente do Tribunal Supremo e do Conselho Superior da Magistratura Judicial pegar na caneta e dar uma ordem directamente contrária a uma sentença judicial. Será que é possível que o presidente do Tribunal Supremo actue de forma tão desabridamente ilegal, violando os elementares princípios do direito judicial?
No mesmo dia 28 de Agosto, surgiu um comunicado da juiz presidente do Tribunal de Benguela. Esse comunicado tenta resolver esta situação inusitada, afirmando que o Ministério Público interpôs recurso de agravo da decisão da juíza Benilde Malé e que esta admitiu o recurso e reparou a decisão. Nesse sentido, a juiz presidente, após a juíza do caso ter mudado a decisão, ordenou que se procedessem às exéquias fúnebres.
Do ponto de vista formal, parece que afinal a juíza da providência cautelar mudou a decisão após entrar o recurso do Ministério Público. Sendo assim, o presidente do Tribunal Supremo já não revogou uma decisão judicial por meio de uma “canetada”. Foi a juíza, ela própria, que voltou atrás. O artigo 744.º do Código do Processo Civil permite que o juiz, depois de recebido o recurso, “repare” a decisão, isto é, que a mude. Portanto, parece que formalmente, foi isso que aconteceu… No entanto, o artigo 744.º estabelece que essa “reparação” só pode ocorrer após o decurso do prazo concedido às partes para alegar. Será que a 28 de Agosto esse prazo já teria passado? Remete-se a resposta aos processualistas.
Toda esta história tem duas conclusões óbvias.
Em primeiro lugar, demonstra que o Estado de Direito, isto é, um Estado em que a lei é o fundamento e limite da sua acção, ainda está muito longe de estar estabelecido em Angola. A vontade do ser humano poderoso ainda pontifica, seja a ministra da Saúde que queria enterrar o morto depressa, seja o presidente do Tribunal Supremo que quis corrigir uma situação apressadamente, seja a juíza Benilde Malé que sai muito desfocada na fotografia, pois num dia decide de uma maneira e 48 horas depois decide da maneira oposta.
A segunda conclusão é que se está a querer transformar o Conselho Superior da Magistratura Judicial numa espécie de órgão de topo dos tribunais, um órgão de soberania. Não pode ser. O CSMJ é um mero órgão de gestão e disciplina de juízes, as suas atribuições são reduzidas, pelo que os seus poderes devem ser mínimos e exercidos com prudência e bom senso, sem o que a independência individual dos juízes fica posta em causa e pode surgir um poder corporativo, não controlado por ninguém.