Pão ou Batata-Doce: A Produção Agro-Alimentar Nacional
Há uns tempos, um membro do governo apelou desajeitadamente aos angolanos para que deixassem de comer pão ao pequeno-almoço e passassem a alimentar-se com batata-doce. Presume-se que a razão subjacente seja o facto de o trigo que serve para fazer pão ser importado, ao passo que a batata-doce é nacional. O problema, como enfatizou Rafael Marques numa recente entrevista à Voz da América, é que comer pão ao pequeno-almoço fica mais barato do que mastigar batata-doce.
É uma política clara deste governo relançar a produção nacional agrícola e passar a ser auto-suficiente em termos alimentares. O objectivo é de aplaudir e não se afigura absurdo. Angola, antes de ser uma potência petrolífera, foi uma potência agrícola. Contudo, não basta decretar: é preciso criar as condições e os estímulos adequados para que a produção agro-alimentar nacional em larga escala seja uma realidade.
A agricultura e a produção alimentar angolanas sofreram dois grandes choques estruturais ao longo dos tempos, os quais tornaram o país extremamente dependente do exterior, circunstância que agora se pretende inverter.
Em primeiro lugar, após a independência em 1975, com a fuga apressada dos técnicos e das empresas portuguesas, deixou de haver o conhecimento e a experiência necessários para a manutenção das explorações agrícolas prósperas que existiam anteriormente. A isto aliou-se a destruição causada pela guerra civil e pelas tentativas de socialização e colectivização da produção agrícola, seguindo os modelos da União Soviética.
Não bastando isto, a partir de 2002, com a introdução do modelo económico pós-guerra assente no petróleo e no consumo, a produção nacional perdeu ainda mais importância. Se havia divisas para importar bens, não era necessário produzi-los. Assim, os grandes empresários tornaram-se importadores e não produtores. A valorização artificial do kwanza ajudou à devastação da produção nacional, pois estimulou as importações e tornou as exportações mais difíceis, porque mais caras. Tornou-se mais barato importar do que produzir domesticamente.
Este estado de coisas começou a tornar-se insuportável a partir de 2014, com o início da crise do modelo económico adoptado, detonado pela baixa consistente do preço do petróleo. Em termos simples: o petróleo deixou de trazer as divisas suficientes para importar sem controlo os alimentos do estrangeiro.
Após anos de hesitações, iniciou-se em 2017 um processo doloroso de modificação deste modelo económico assente no petróleo caro e no consumo exacerbado.
É neste contexto que se enquadram várias medidas que têm sido tomadas actualmente, umas mais estruturais, como a liberalização do kwanza (que tem levado à sua desvalorização), e outras conjunturais, como a limitação das divisas utilizadas para comprar produtos alimentares do exterior quando exista produção nacional. A desvalorização do kwanza, entre outros factores, pretende que se torne mais difícil importar os produtos agrícolas, obrigando à produção interna. No mesmo sentido vai a recente decisão da Comissão Económica do Conselho de Ministros, ao estabelecer que o governo deixará de disponibilizar fundos do Tesouro para a importação de produtos de elevado consumo interno que o país tenha capacidade para produzir.
Atendendo ao facto de que se está em fase de relançamento de um sector que tinha ficado moribundo em Angola e para o qual o país tem elevado potencial – o sector agro-alimentar –, estas medidas proteccionistas e de limitação do livre-comércio internacional são pertinentes. Trata-se de lançar uma área em renascimento. Aplica-se a doutrina das indústrias nascentes. Neste caso, renascentes.
A criação da doutrina segundo a qual indústrias nascentes necessitam de protecção inicial até amadurecerem é atribuída ao primeiro secretário do Tesouro norte-americano Alexander Hamilton, que iniciou o debate sobre da protecção da indústria nascente em 1791 e defendeu a protecção das indústrias dos Estados Unidos face às importações da Grã-Bretanha nos seus relatórios oficiais. Na verdade, Estados Unidos, Alemanha e Japão garantiram a fase de arranque do seu desenvolvimento económico, protegendo as suas indústrias com base nessa ideia.
Nesse sentido, é de assumir que, depois da devastação a que foi submetida, a produção agro-alimentar nacional necessita de uma fase inicial de protecção e de um incentivo para se relançar novamente. Neste âmbito, inscrevem-se as medidas descritas de desvalorização do kwanza e de limitação de acesso a divisas para compra de produtos estrangeiros já existentes em Angola.
Contudo, há condições fundamentais para que esta política não se transforme num puro disparate, apenas beneficiando as oligarquias internas, aumentando os preços ou trazendo escassez alimentar.
A par do proteccionismo externo, com as barreiras à entrada de produtos estrangeiros tem de ser também agressivamente liberalizada a produção e o mercado internos.
A protecção externa só se justifica com liberalização interna. Parece contraditório, mas é assim. Isto quer dizer que, a nível doméstico, tem de ser garantida a estrutura, o acesso e a transparência de mercado.
O mercado dos produtores de bens alimentares em Angola tem de ser competitivo, não estando na mão de dois ou três generais, dois ou três ex-ministros que beneficiarão de um campo só para eles, sem concorrência. Não pode existir aquilo a que em economia se chama um monopólio (uma empresa a dominar o mercado) ou oligopólio (poucas empresas a dominar o mercado). Se houver poucas empresas a dominar o mercado, facilmente se percebe que não vão fazer mais nada além de aumentar os preços. Não têm concorrência, não têm estímulo para agir, e para lucrarem basta subir o valor dos produtos que vendem. Isto será catastrófico. Portanto, é fundamental que o governo garanta que há concorrência ou estímulos adequados para produzir mais e não meramente para lucrar com subidas artificiais de preços.
O segundo aspecto que tem de ser ponderado é o acesso ao mercado. Os produtores têm de ter condições logísticas e de transporte para chegarem aos mercados onde vendem os seus produtos. E não devem existir proibições burocráticas, administrativas ou supostamente técnicas que barrem esse acesso ao mercado. É preciso, portanto, considerar condições administrativo-legais e em termos de infra-estruturas. O problema do estado das estradas para fazer chegar os produtos dos campos às cidades e a questão dos inúmeros impedimentos legais para exercer uma actividade deverão estar na linha da frente das preocupações governamentais.
Finalmente, temos a questão da transparência do funcionamento dos mercados. Devem ser criados mecanismos que divulguem a informação sobre os produtores existentes, os produtos, os preços, os locais de venda. Possivelmente, a criação do Portal de Divulgação da Produção Nacional insere-se no âmbito destas preocupações. Este portal é descrito como “uma plataforma informática que surge como um meio acessível de comunicação para o mercado da produção feita em Angola, disponível para comercialização”. O Executivo afirma que, com essa plataforma, “os produtores nacionais têm disponível um portal electrónico para divulgarem os produtos que tenham para comercializar, enquanto toda a informação inserida no portal ficará disponível ao público num aplicativo móvel, permitindo aos cidadãos aceder aos dados da produção nacional e aos contactos dos respectivos produtores. Com o aplicativo Feito em Angola, todos os cidadãos podem ter no seu telemóvel e à distância de um simples click os dados da produção feita em Angola”.
Se este instrumento funcionar, é uma forma de trazer transparência ao mercado e deixar funcionar com plena informação as leis da oferta e da procura.
Em resumo, justifica-se, face ao imenso potencial agro-alimentar de que Angola dispõe, que o Governo intervenha no sentido de fomentar o renascimento em massa da produção nacional e coloque barreiras às importações. Mas a imposição de barreiras externas só funcionará se forem levantadas as barreiras internas. Paradoxalmente, o proteccionismo externo implica uma agressiva liberalização interna e a criação de infra-estruturas adequadas.
Talvez assim seja possível comer batata-doce ao pequeno almoço.