Um Tiranete no Tribunal Supremo

O Presidente da República, João Lourenço, colocou o poder judicial no centro da vida político-constitucional do país. Daquele que foi o “parente pobre” no tempo de José Eduardo dos Santos, esperava-se que fosse o principal motor do combate à corrupção e se tornasse um pilar da nova Angola, emergindo como um poder independente, imparcial e eficiente.

As intenções de Lourenço eram boas, mas sempre entendemos que deviam ser acompanhadas por uma profunda reforma do pessoal e do funcionamento do poder judicial.

Tal não aconteceu, e o que hoje temos é uma magistratura em queda livre nas mãos do puro arbítrio e com comportamentos opacos e que não dignificam a nobreza da sua função. Não é difícil augurar que o poder judicial se constituirá no principal inimigo real das reformas pretendidas pelo presidente da República.

Um dos variados casos que tem merecido a nossa atenção é o da nomeação de juízes desembargadores e da instalação dos tribunais da Relação. Tem sido um processo eivado de irregularidades e raiando o puro surrealismo, desprimorando alguns dos valorosos juízes que foram promovidos.

Recentemente, abordámos a decisão do presidente do Tribunal Supremo, Joel Leonardo, de criar uma nova fornada de desembargadores, sem se perceber porquê e para quê.

Somos agora confrontados com o anúncio daquilo que parece ser uma decisão individual do presidente do Tribunal Supremo de alocar esses 29 juízes desembargadores ao Tribunal da Relação do Lubango, na província da Huíla. Há aqui um pequeno detalhe: não houve qualquer concurso ou qualquer procedimento estribado na lei para preencher os lugares no Tribunal da Relação do Lubango.

Os tribunais da Relação para os quais já houve concurso e um procedimento aberto foram os de Luanda e de Benguela. Não se percebe de onde surge agora esta história fantástica de mandar desembargadores para o Lubango, e muito menos qual o enquadramento legal.

A Lei da Organização e Funcionamento dos Tribunais de Jurisdição Comum (Lei 02/15) determina a implementação gradual dos tribunais de Relação e vem dizer que primeiro devem funcionar os tribunais de Luanda e de Benguela.

Ainda nem os dois primeiros tribunais estão a funcionar e já se mandam desembargadores para outro tribunal, que também não está a funcionar. Aparentemente, no Lubango já há umas instalações prontas ou quase para o tribunal, que devem ser inauguradas pelo presidente da República. Então, estes juízes desembargadores iriam servir de moldura para essa inauguração.

Já há 38 juízes desembargadores em casa há cerca de um ano, porque os tribunais de Relação de Luanda e de Benguela ainda não funcionam. A estes juntar-se-ão, em casa, mais os 29 desembargadores nomeados por Joel Leonardo, e ainda os quatro de sua criação. Ao todo, serão 71 juízes esvaziados da primeira instância, onde os magistrados estão sobrecarregados com processos, para ficarem em casa a ganhar sem fazer nada.

A justiça não pode funcionar assim. Um tribunal é um sistema complexo do qual fazem parte instalações, juízes, procuradores, funcionários, além de leis processuais que regulam a marcha dos processos. Sem isto estar em funcionamento e preparado, não há tribunais, há brincadeiras. Obviamente, o presidente da República não deveria caucionar estes jograis.

Alegadamente, existe uma segunda parte da decisão de Joel Leonardo: os juízes que não tiverem lugar no Lubango vão presidir às comarcas de primeira instância. Este é o modelo de Moçambique, em que juízes desembargadores presidem às comarcas.

Poderia ser até uma boa solução no âmbito da reforma do poder judicial e com o intuito de dar mais consistência aos tribunais de primeira instância. Mais juízes e mais formação são sempre bem-vindos. O problema é o mesmo detalhe referido anteriormente. Desconhece-se em que lei se baseia esta decisão: onde está estabelecido que os juízes desembargadores angolanos podem dirigir os tribunais de primeira instância?

Quando questionado, na reunião de hoje do Conselho Superior da Magistratura Judicial (CSMJ), Joel Leonardo, qual tirano, afirmou apenas que comunicava a sua decisão. Segundo os presentes, o presidente do Tribunal Supremo argumentou que “em Portugal também se faz assim”, apesar de não haver legislação em Angola que suporte o seu estigma de colonizado.

Para além da justificação descabida, os membros do CSMJ queixam-se da abertura de mais quatro vagas para juízes desembargadores e do seu preenchimento de forma abusiva, sem concurso público. O CSMJ desconhece, até ao momento, quem são os quatro novos juízes desembargadores escolhidos unicamente por Joel Leonardo.

Com toda a franqueza, parece que está uma trapalhada em movimento na justiça, com decisões sem fundamento legal, parecendo arbitrárias e dependendo da vontade dos indivíduos e não de normas prévias gerais e abstractas.

Há dois aspectos muito graves no presente momento do poder judicial.

O primeiro aspecto é que não houve uma efectiva renovação de quadros. Os antigos juízes ligados ao antigo poder continuam com o seu grupo corporativo a liderar a instituição. Obviamente que, assim sendo, o seu objectivo principal não é a independência da justiça, mas a autopreservação de manifestas sinecuras e interesses pessoais. Enquanto virem o vento a soprar a favor do presidente da República, estarão com ele, como estiveram com José Eduardo dos Santos, com a mesma deferência e seguidismo. Mas basta sentirem um vento diferente para corporativamente, e atendendo a que representam um mesmo grupo predefinido, se moverem em sentido diferente. Curiosamente, esta percepção é-nos confirmada por juízes mais novos e não integrados no grupo da liderança.

O segundo aspecto é que parece haver um desleixo ou desconsideração pela lei e pelos procedimentos adequados. Demasiadas decisões são tomadas sem se perceber o enquadramento legal, os fundamentos e os limites. Um Estado de Direito implica, naturalmente, que a lei seja a base e a fronteira de todas as decisões dos órgãos judiciais e administrativos do Estado. Nas decisões descritas acima, não se vislumbra o que aconteceu à lei.

Uma nota de fim de página sobre as peripécias do juiz João António Francisco, que temos acompanhado desde o seu comportamento inenarrável no julgamento de vários pastores da Igreja Adventista do Sétimo Dia por um inexistente rapto de Daniel Cem, também antigo pastor da mesma Igreja. Embora, na altura, por indicação do juiz conselheiro Joel Leonardo, lhe tenha sido aberto um processo disciplinar, tal não impediu que o juiz Francisco se tornasse secretário do Conselho Superior da Magistratura Judicial, isto é, do mesmo Joel Leonardo. Nesse posto, aparentemente, destacou-se por adjudicar obras não previstas no orçamento no valor de alguns milhões de kwanzas, o que levou o mesmo Leonardo a querer afastá-lo, promovendo-o a juiz desembargador. É mais uma situação descabida.

Apesar de ter um processo disciplinar instaurado pelo próprio CSMJ, João António Francisco continua a exercer as funções de facto de secretário judicial do mesmo órgão que o investiga. É a figura sombra de Joel Leonardo.

Quando o presidente do Tribunal Supremo, o chefe dos juízes, comete ilegalidades tão gritantes e não dá ouvidos aos seus pares, que lhe pedem zelo à lei, o que se pode esperar do sistema judicial?

É antiga e conhecida a citação bíblica: “Tudo tem o seu tempo determinado, e há tempo para todo o propósito debaixo do céu” (Eclesiastes 3:1). Já foi o tempo da velha justiça e dos juízes comprometidos com o poder. Este tem de ser o tempo da reforma da justiça e dos juízes imparciais e independentes. Joel Leonardo está a estrangular a justiça, está a matar a justiça como um verdadeiro tirano.

É tempo de exigir o seu afastamento.

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