Racismo Institucional na Abertura das Fronteiras da União Europeia
Os últimos meses têm sido marcados por dois factos nefastos: a pandemia Covid-19 e o assassinato de George Floyd às mãos da polícia norte-americana. Este último gerou uma onda de manifestações e actos públicos de uma tal intensidade que parecia que o racismo tinha sido finalmente abolido.
Contudo, uma coisa são as lutas ideológicas, culturais e sociais que têm lugar nos Estados Unidos e nalguns países europeus, e outra coisa é o real empenho para pôr fim ao racismo e à discriminação da África Subsaariana. Ao contrário do que se poderia pensar numa análise superficial, trata-se de fenómenos bem distintos.
O racismo institucional e a discriminação da África Subsaariana – que é uma das razões, embora não a única, da sua pobreza e do atraso no seu desenvolvimento – persiste nos quadrantes mais surpreendentes.
Uma dessas surpresas vem da recente decisão da União Europeia relativamente à abertura de fronteiras a países terceiros, no âmbito do chamado “desconfinamento pós-Covid-19”. Saiu uma lista dos países considerados seguros e que passarão a beneficiar de acesso normalizado à União Europeia (UE). A lista é formada pela Argélia, Austrália, Canadá, Geórgia, Japão, Montenegro, Marrocos, Nova Zelândia, Ruanda, Sérvia, Coreia do Sul, Tailândia, Tunísia, Uruguai e China. Neste último caso, sujeito a condições específicas.
O que espanta nesta lista é que apenas um dos países, o Ruanda, pertence à África Subsaariana. Esta decisão não se baseia em critérios razoáveis, pois os números da pandemia na África Subsaariana são genericamente melhores do que na Alemanha, e o Ruanda não apresenta resultados mais significativos do que muitos outros países.
É evidente que o Ruanda de Paulo Kagame foi escolhido por ser o “menino-bonito” da UE. Isso não desmerece o Ruanda. Kagame conseguiu a harmonia num país devastado pela morte e pelo massacre, e agora está empenhado em construir uma Singapura no centro de África, com as virtudes e os defeitos que este modelo aporta.
A questão é que se vê perfeitamente que o Ruanda foi escolhido apenas para tentar evitar qualquer acusação de racismo institucional por parte da UE, quando na verdade esta escolha única confirma esse racismo. É a excepção que confirma a regra.
Analisemos os números, escolhendo um que talvez seja o mais relevante: o número de mortos por cada milhão de habitantes. No país mais importante da União Europeia, a Alemanha, cujas políticas foram consideradas um sucesso no combate à Covid-19, a taxa de mortalidade por milhão foi de 108. Morreram 108 pessoas por cada milhão de habitantes devido à Covid-19, segundo dados actualizados a 2 de Julho de 2020.
No Ruanda, essa mesma taxa é de 0,2. Incomparavelmente melhor. A questão é que muitos outros países africanos apresentam taxas tão boas ou melhores. Verifiquemos dois países de expressão lusófona. Em Angola, a taxa é de 0,5, ligeiramente pior do que o Ruanda, mas substancialmente melhor do que a Alemanha. Em Moçambique, a taxa é de 0,2, igual à do Ruanda.
Olhemos para outros países de África. Na Namíbia, a taxa é de 0. Aparentemente, não morreu ninguém com Covid-19. No Botswana, é de 0,4.
A verdade é que a disparidade entre as taxas de mortalidade por Covid-19 na África Subsaariana e na União Europeia é enormemente desfavorável ao Velho Continente. Por isso, não se percebem as limitações que são colocadas à normalização das viagens provenientes do continente africano.
Na verdade, é uma decisão política baseada na imagem da África Subsaariana como sendo governada por dirigentes semiletrados, e dotada de uma máquina administrativa inábil, sem capacidade de resposta na área da saúde e das estatísticas – por isso, os números que estes países apresentam não são fiáveis. Logo, a União Europeia desconfia dos números africanos e não arrisca.
No fundo, temos aqui as velhas percepções coloniais tão bem caracterizadas por Achille Mbembe. O africano é o Outro. O Outro é considerado como não sendo civilizado, um selvagem que não está a desenvolver as suas capacidades humanas, portanto, necessitando dos europeus para assegurar a sua evolução para um mundo moderno. Na verdade, os europeus criaram um imaginário do Outro que permitiu o seu domínio.
Esta imagem do Outro permanece na mente dos decisores europeus quando bloqueiam as viagens de África para a Europa. Não há números de saúde pública que objectivamente justifiquem essa decisão. Está comprovado que, por razões ainda não compreendidas, a África é das regiões menos atingidas pela pandemia.
Consequentemente, o que existe é o medo europeu do Outro. Na realidade, estamos perante um claro racismo institucional nesta decisão. O que espanta é que, no meio de tantas manifestações nas ruas europeias, as ideias predominantes de encarar África como o continente do Outro não tenham mudado.
E isto é grave, porque é esta atitude que permite que os dirigentes africanos se tornem corruptos, saqueiem impudentemente os seus povos e levem a cabo outros desmandos. São sempre encarados como o Outro, que têm comportamentos diferentes e não podem ser avaliados segundo critérios de racionalidade e modernidade.
É tempo de modificar este imaginário, e a questão absurda da proibição das viagens de África é um ponto de partida válido e pertinente.