Confusão na Investigação Criminal: O Novo Órgão da Polícia Nacional

Tantas décadas depois da independência de Portugal, Angola persiste em copiar, e muitas vezes mal, as soluções legais adoptadas na antiga metrópole. A maior parte das vezes, não se percebem as razões lógicas subjacentes a tal cópia, a não ser que a tomemos como um deslumbramento intelectual, com resquícios neocoloniais, perante Lisboa. Parece que o princípio que leva muitos dirigentes angolanos a comprar prédios no Estoril com belas vistas para o mar é o mesmo que impulsiona a transposição de leis lusas para Angola.

Um dos exemplos mais recentes de imitação injustificada está a ocorrer ao nível da investigação criminal.

Até há pouco tempo, a investigação criminal em Angola competia ao Serviço de Investigação Criminal (SIC). O SIC, por legislação presidencial de 2017 assinada nos últimos dias do mandato de José Eduardo dos Santos (decreto presidencial n.º 179/17, de 9 de Agosto, que aprova o Regulamento Orgânico do Serviço de Investigação Criminal), é um órgão central do Ministério do Interior, com funções de polícia judiciária e criminal (artigo 1.º). O seu director é nomeado pelo presidente da República, sob proposta do ministro do Interior (artigo 9.º).

Percorrendo as várias disposições do diploma orgânico do SIC, percebe-se que houve a tentativa de o tornar numa espécie de Polícia Judiciária, seguindo o modelo português, que por sua vez se foi inspirar na famosa Police Judiciaire francesa.

Distinguia-se assim um rumo claro, em termos de investigação criminal e divisão de tarefas das polícias angolanas. A Polícia Nacional tentava evitar e prevenir a ocorrência de crimes; e quando estes aconteciam competia ao SIC investigá-los, sob a alçada do Ministério Público, mais uma inspiração portuguesa, que por sua vez, neste caso, se inspirou no modelo alemão.

Teria mais lógica, e pelo menos manter-se-ia o equilíbrio de poderes gizado em Portugal, se este SIC, autónomo com funções judiciárias, estivesse adstrito ao Ministério da Justiça, e não ao Ministério do Interior, como veio a acontecer em Luanda.

Em Angola, o Ministério da Justiça tornou-se um parente pobre do Estado, submetendo-se a preocupações securitárias na orgânica do governo, as quais deixaram de fazer sentido. O SIC continuou, estranhamente, a depender do Ministério do Interior, dividindo as atenções com a Polícia Nacional. Dentro dos preceitos da ciência da administração, facilmente se percebe que a investigação criminal seria, da mesma maneira, um “parente pobre” deste enorme ministério.

De repente, sem o SIC estar ainda bem sedimentado e operacional, surge o decreto presidencial n.º 152/19, de 15 de Maio, já no mandato de João Lourenço, que estabelece o Estatuto Orgânico da Polícia Nacional. O artigo 3.º determina, como é normal no sistema constitucional angolano, que a Polícia depende do presidente da República, auxiliado pelo ministro do Interior.

A inovação reside no artigo 5.º, n.º 6, f), que institui uma Direcção de Investigação de Ilícitos Penais (DIIP), cujas funções são esclarecidas pelo artigo 47.º do mesmo Estatuto. Aí se dispõe essencialmente que esta nova Direcção terá como funções a investigação criminal e a instrução de processos-crime.

Esta norma presidencial foi, no início da época infeliz da pandemia Covid-19, complementada pela Lei n.º 6/20, de 24 de Março, a Lei de Bases sobre a Organização e Funcionamento da Polícia Nacional. Esta lei, a mais solene forma de direito, com excepção da Constituição, aprovada na Assembleia Nacional, consagra e aprofunda o que já se tinha adiantado no decreto presidencial de 2019.

Curiosamente, o papel do presidente da República é reforçado, surgindo como o único responsável pela direcção superior da Polícia Nacional (artigo 6.º e artigo 31.º). Pode-se considerar que a Polícia Nacional deixou de estar na dependência do ministro do Interior, passando a depender directamente do presidente da República. Não sabemos se seria essa a intenção do legislador, mas é o que se deduz da leitura das normas referidas sobre a direcção superior da Polícia, de onde desaparece qualquer referência ao ministro do Interior. A Polícia Nacional passa a ser um órgão directo da Presidência da República.

No âmbito da luta contra a corrupção, temos defendido a criação de uma instituição específica, dependente do presidente da República, para tornar esse combate mais eficaz. Contudo, transferir toda a Polícia para a Presidência não era exactamente o que tínhamos em mente, pois dispersa em vez de concentrar esforços.

E é nesta questão fundamental de falta de foco e de concentração de esforços que esta Lei tem o seu pecado maior, na sequência da norma de 2019, ao conceder também à Polícia Nacional a tarefa de investigação criminal e instrução de processos (artigo 7.º, b).

Temos agora, em Angola, duas entidades de investigação criminal: o SIC e a DIIP. No início de Julho de 2020, 21 oficiais superiores e subalternos, afectos à DIIP, foram empossados nos cargos de chefes de departamentos e secções pelo comandante-geral da Polícia Nacional. Segundo a comunicação institucional da Polícia, o comissário-geral Paulo de Almeida avançou que “a DIIP tem incumbência de definir procedimentos, controlar e coordenar a actividade de investigação criminal e instruir processos-crime, estabelecidos pela legislação processual penal entre os órgãos da Polícia Criminal, sob direcção do magistrado competente”. Esclareceu também que “está a ser implementado um projecto de lei para regularizar em concreto as tipicidades criminais que os policiais criminais vão debruçar na base da exclusividade, complexidade, especialidade, bem como da generalidade para pôr fim às incertezas nos campos de actuação”.

Embora Paulo de Almeida antecipe as críticas a esta Direcção, desconsiderando que “alguns teóricos e ideológicos, desconhecedores da arte e ciência policial, têm em mente que haverá sobreposição de órgãos a concorrerem para o mesmo fim”, a verdade é que temos aqui o estabelecimento de uma confusão que levanta problemas operacionais, financeiros e constitucionais.

Comecemos pelos problemas operacionais e financeiros. É evidente que se está a copiar o modelo português, em que a Polícia Judiciária (PJ) investiga alguns crimes (os mais graves) e a Polícia de Segurança Pública (PSP) trata de outros (os menos graves). Na verdade, em Portugal, a divisão da investigação criminal foi ainda mais atómica, levando à existência de variadas autoridades criminais, desde o Fisco à autoridade que inspecciona a economia e outras mais. Houve uma proliferação de autoridades de investigação criminal no país.

Não é este o local para fazer um balanço de tais opções, mas a verdade é que esta disseminação da investigação em Portugal levou à dispersão de recursos e de foco, e a investigação criminal não é um tema de que o Estado português se possa orgulhar. As instituições não têm fundos suficientes e os processos demoram demasiado tempo a ser concluídos.

Se isto se passa em Portugal, pior será em Angola. Numa altura de crise financeira, não faz sentido criar mais órgãos, que pedirão mais dinheiro ao Orçamento Geral de Estado (OGE), dinheiro de que este não dispõe.

No fim, nem a Polícia Nacional nem o SIC terão os meios suficientes.

Numa altura em que o SIC ainda estava em evolução relativamente ao modelo de Polícia Judiciária, não tendo alcançado a maturidade suficiente, é incompreensível que se lhe retire espaço, até porque os quadros da nova Direcção possivelmente virão do SIC, esvaziando este organismo.

Confusão, confusão

Angola não se pode dar ao luxo de criar confusão na investigação criminal, até porque obviamente vão surgir problemas de competência, quer positiva (SIC e Polícia a quererem tratar do mesmo assunto) quer negativa (SIC e Polícia a dizerem simultaneamente que o assunto não é com eles).

Ao mesmo tempo, com a actuação de agentes à paisana, permitida por lei, pode acontecer que determinadas operações de uma das polícias sejam comprometidas pela actuação da outra.

Este tempo devia ser de foco, concentração, eficácia, e o que vemos é a criação de novos pontos de atrito, situações pantanosas e modelos que já deram provas de não funcionar.

Repetimos o que temos defendido: é no combate à corrupção que devia ser criado um sistema especial específico. No restante, deveria haver racionalização e eficácia. Assim, estamos a criar “brinquedos” para as chefias dos vários departamentos se entreterem e a dispersar recursos.

Como referimos, há problemas constitucionais nesta solução e na sua prática. Por exemplo, nos poderes judiciais que o artigo 52.º da Lei de Bases confere à Polícia. E também na contínua violação do estabelecido no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 467/2017, de 15 de Novembro. No entanto, o texto já vai longo e por isso esta análise fica para outra oportunidade.

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