Combate à Corrupção: a Proposta de Moco

Marcolino Moco é uma figura da história de Angola e as suas opiniões devem ser ouvidas com atenção. Por isso, é com o coração pesado e humildade acrescida que um mero escrevinhador de textos mais ou menos jurídicos se atreve a discordar dele no que diz respeito ao combate à corrupção.

A proposta de Moco relativamente à corrupção assenta naquilo a que se chama “justiça restaurativa” e foca-se na existência de acordos entre os “marimbondos” (esta expressão serve para simplificar) e o Estado angolano, segundo os quais aqueles devolveriam o dinheiro que desviaram e obteriam perdão criminal e legal pelos seus actos. Traça-se uma linha e segue-se em frente sem mais corrupção.

É evidente que alguns pontos de partida da proposta de Marcolino Moco têm razão de ser: o MPLA instalou um sistema de total corrupção, e portanto ninguém está a salvo; a justiça tem capacidade para resolver casos concretos, mas não questões sistémicas; no fim de contas, houve um regime político corrupto, o que implica uma solução política.

Face a isto, acreditamos que a solução para a corrupção também tem de ser política, e não jurídica, e que tem de haver pragmatismo. Contudo, é esse mesmo pragmatismo e a necessidade de uma solução global que impedem a concordância com as teses do antigo primeiro-ministro.

Um acordo com os “marimbondos” apenas aumenta o prémio da corrupção. No futuro, os corruptos desviarão ainda mais recursos, contando que terão de devolver uma parte caso sejam apanhados pela justiça. Se não forem efectivamente punidos pelos seus actos, não haverá qualquer desincentivo a que voltem a desviar fundos no futuro; da mesma maneira, se tiverem somente de ressarcir o Estado, então tornar-se-ão mais cuidadosos e mais gananciosos. No estado actual de coisas, um acordo apenas aumenta o perigo da corrupção, não o diminui.

Do ponto de vista teórico, a justiça restaurativa foca-se na vítima e no relacionamento do perpetrador com esta. Acontece que, nos casos de corrupção, as vítimas são todos os angolanos. Ora, dificilmente percebemos que exista uma forma de conciliar Isabel dos Santos com o povo angolano… ou como se encontrarão os mecanismos para propiciar isto.

Pode contrapor-se com o exemplo do sistema sul-africano de uma Comissão de Verdade e Justiça. É certo que este sistema teve as suas vantagens, mas muito entendem que ele serviu para manter boa parte dos problemas (designadamente, um apartheid económico e social) e que também a ele se deve o facto de, hoje, a África do Sul ser uma sociedade em desmoronamento.

Em Angola, há que definir uma fronteira clara. Caso contrário, a corrupção não terá fim – a máquina não vai parar com meias-tintas. Ainda agora estamos perante o caso aparente do governador do Cunene, que, já no mandato de João Lourenço, alegadamente terá desviado fundos para o combate à seca. Depois de toda a retórica, alguns persistem nos comportamentos de sempre, porque sentem que podem levar a sua avante. Há vários factores de estímulo à corrupção, os quais só podem ser combatidos através de fortes medidas dissuasoras.

Todavia, é verdade que a prossecução de milhares de processos-crime contra os corruptos se torna inviável e ineficaz. É aqui que a política entra, podendo propor soluções legislativas e práticas que, por um lado, garantam o combate efectivo à corrupção e, por outro, não paralisem o país e as instituições.

Ironicamente, uma primeira medida foi tomada ainda por José Eduardo dos Santos e a Assembleia Nacional: a aprovação da Lei da Amnistia de 2016, que genericamente amnistiou todos os crimes puníveis com pena de prisão até 12 anos, cometidos até 11 de Novembro de 2015 (artigo 1.º, n.º 1). Ora, esta norma afasta desde logo uma imensidão de factos, reduzindo em muito o escopo legal do combate à corrupção. A Procuradoria-Geral da República (PGR), quando actuar criminalmente, deve submeter desde o início os factos ao crivo desta norma e, a partir do momento em que caibam nela, não valerá a pena continuar.

Dentro do mesmo espírito, poder-se-ia conceder à PGR uma margem de apreciação mais alargada e permitir-lhe legalmente interpretar a lei no sentido do caso concreto, fazendo um juízo de prognose (previsão antecipativa) para situações em não se preveja a aplicação de pena superior a 12 anos. Trata-se de um juízo sempre subjectivo, mas permitiria que a PGR não avançasse com casos de factos ocorridos até 2015 para os quais previsse que não seriam aplicáveis penas concretas superiores a 12 anos. Possivelmente, esta situação deveria ter a concordância de um juiz. Portanto, a Lei da Amnistia seria complementada por uma nova Lei, que estenderia a regra dos 12 anos de prisão como patamar concreto de amnistia para factos ocorridos antes de 2015, sendo tal decisão submetida a validação judicial.

Além desta especificação sobre a Lei da Amnistia, deveria ser introduzida legislação sobre a “colaboração premiada”, no âmbito da qual seriam permitidos acordos entre os arguidos e o Estado, como acontece no Brasil e nos Estados Unidos. Mas esses acordos seriam feitos no âmbito de processos judiciais, e sindicados por juízes. Não bastaria entregar o dinheiro: teria de haver explicitação dos esquemas usados, das cumplicidades e a existência de um período probatório em que a pessoa ficaria sujeita a restrições e não poderia voltar a cometer crimes. Não se pode continuar a falar em acordos sem elaborar legislação que permita levar a cabo esses acordos de forma transparente.

Entre a Lei da Amnistia de 2016 com a margem de apreciação adicional da PGR e a instituição de legislação acerca da “colaboração premiada”, será possível elaborar um quadro jurídico suficientemente pragmático que permita concentrar os esforços do combate à corrupção no essencial e colocar o país a funcionar. É este o caminho judicial do combate à corrupção, e não outro.

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