O Caso Isabel dos Santos: Extradição de Portugueses para Angola

Com parangonas enfáticas, muita imprensa apressou-se a designar os nomes dos co-arguidos portugueses de Isabel dos Santos. São eles Paula Oliveira, Mário Leite da Silva, Sarju Raikundalia e Nuno Ribeiro da Cunha, que entretanto morreu em circunstâncias ainda não esclarecidas oficialmente.

Alguns dias depois, o procurador-geral da República de Angola anunciava ter interesse em proceder ao julgamento dos cidadãos portugueses em Luanda.

Apressadamente, surgiram algumas afirmações públicas a dizer que tal não era possível sem o acordo dos arguidos, nos termos da Convenção de Auxílio Judiciário em Matéria Penal entre os Estados-Membros da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, de que Portugal e Angola são parte plena. De facto, no artigo 12.º dessa Convenção determina-se no seu n.º 1 que: “Se o Estado requerente pretender a comparência, no seu território, de uma pessoa, como suspeito, arguido ou indiciado (…) pode solicitar ao Estado requerido o seu auxílio para tornar possível aquela comparência.” No entanto, o n.º 2, b) da mesma norma impõe que “A pessoa cuja comparência é pretendida [tenha dado] o seu consentimento por declaração livremente prestada e reduzida a escrito.” Daqui parece resultar claro que os portugueses mencionados só seriam julgados em Luanda se o quisessem.

Todavia, a questão não é assim tão linear. Acreditamos haver alguma possibilidade legal de os portugueses serem levados para julgamento em Luanda contra a sua vontade, devido a uma redacção algo ambígua da Constituição portuguesa.

Até à Lei da Revisão Constitucional n.º 1/97, de 20 de Setembro, a norma fundamental portuguesa proibia sem qualquer excepção a extradição dos seus cidadãos para outros países. Contudo, após 1997, o artigo 33.º, n.º 3 da Constituição passou a dispor:

“A extradição de cidadãos portugueses do território nacional só é admitida, em condições de reciprocidade estabelecidas em convenção internacional, nos casos de terrorismo e de criminalidade internacional organizada, e desde que a ordem jurídica do Estado requisitante consagre garantias de um processo justo e equitativo.”

Deste texto constitucional resulta que a extradição de portugueses passou a ser possível após 1997, verificando-se as seguintes condições:

i) Reciprocidade de condições com o país requerente, estabelecida em convenção internacional;

ii) Casos de terrorismo e criminalidade internacional organizada;

iii) Necessidade da ordem jurídica do Estado requisitante consagrar garantias de processo justo e equitativo.

É portanto possível extraditar cidadãos portugueses contra a sua vontade, desde que estes requisitos sejam cumpridos. Vejamo-los um a um.

Pela norma constitucional portuguesa, a possibilidade de extradição não tem de estar prevista numa convenção internacional, como a Convenção da CPLP acima mencionada. O que tem de estar previsto em convenção internacional são as condições de reciprocidade, i.e., que os países se comprometam com os mesmos desideratos e tratamentos. Ora, isso acontece em várias convenções da Organização das Nações Unidas de que Angola e Portugal são parte. Basta referir uma: a Convenção das Nações Unidas contra a Criminalidade Organizada Transnacional, concluída em Nova Iorque a 15 de Novembro de 2000. Em Portugal, esta Convenção está em vigor desde 2004; em Angola, está em vigor desde 2013.

Temos aqui uma Convenção Internacional que assegura a perfeita reciprocidade entre Portugal e Angola. Acontece que o seu artigo 16.º prevê a possibilidade de extradição em relação aos países signatários da Convenção e aos crimes aí previstos que são, entre outros, participação num grupo criminoso organizado (artigo 5.º), branqueamento de capitais (artigo 6.º), corrupção (artigo 8.º). No artigo 16.º estabelece-se, portanto, a possibilidade de extradição. No seu número 4.º refere-se que, “Se um Estado Parte que condicione a extradição à existência de um tratado receber um pedido de extradição de um Estado Parte com o qual não celebrou tal tratado, poderá considerar a presente Convenção como fundamento jurídico da extradição quanto às infracções a que se aplique o presente artigo.” Quer isto dizer que a própria Convenção assume o seu carácter como base e fundamento para extradição. O número 5.º condiciona essa natureza declarando: “Os Estados Partes que condicionem a extradição à existência de um tratado: a) No momento do depósito do seu instrumento de ratificação, de aceitação, de aprovação ou de adesão à presente Convenção, deverão indicar ao Secretário-Geral da Organização das Nações Unidas se consideram a presente Convenção como fundamento jurídico para a cooperação com outros Estados Partes em matéria de extradição.” Analisando as notificações do Estado português à ONU no âmbito desta Convenção, não se encontra nenhuma menção ao facto de se entender que esta sirva como tratado de extradição.

No entanto, como mencionámos no início desta curta exposição, a própria Constituição não exige um tratado de extradição para se proceder à mesma, exige apenas um tratado em que estejam estabelecidas condições de reciprocidade, pois a extradição poderá ser sempre regulada pela Lei de Cooperação Judiciária Internacional respectiva. Assim, temos uma convenção internacional que estabelece reciprocidade de condições entre Angola e Portugal quando se trate dos crimes mencionados, podendo-se realizar a extradição de acordo com o previsto na lei ordinária.

Falta verificar os dois requisitos seguintes. O segundo – tratar-se de casos de terrorismo ou criminalidade internacional organizada – torna-se bastante fácil de caracterizar face àquilo que tem sido avançado pela imprensa mundial. Temos efectivamente uma aparência de organização sofisticada com ramificações internacionais: Portugal, Dubai, Malta, Angola. A comprovaram-se os factos que têm sido tornados públicos, é fácil depreender que poderemos estar numa situação de criminalidade internacional organizada.

Finalmente, temos o requisito “garantias de processo justo e equitativo”. Naturalmente, conhecendo as deficiências do poder judicial angolano, poderíamos duvidar seriamente da verificação deste requisito. O problema é que, a propósito do caso Manuel Vicente, o Tribunal da Relação de Lisboa declarou que em Angola é possível haver uma boa administração da justiça, e se esse “veredicto” é válido para julgar Manuel Vicente, então tem de ser também válido para o caso Isabel dos Santos. Não sendo uma questão totalmente resolvida do ponto de vista legal, a verdade é que a possibilidade de extradição dos portugueses para julgamento em Angola existe. Situa-se numa linha fina de argumentação jurídica, mas está lá. Não quer isto dizer que concordo com a solução constitucional seguida em 1997 – na verdade, discordo bastante –, mas ela foi aprovada na Assembleia da República portuguesa e pode ser submetida a teste neste famoso caso.

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