Escolha de Juízes: Prepotência e Intimidade Telefónica

“Non bis in idem” é uma expressão latina que significa “não duas vezes o mesmo”, e que constitui um dos princípios fundamentais do Direito. Ora, é justamente o contrário, “idem bis” (“duas vezes o mesmo”), que parece estar a acontecer no exercício da presidência do Tribunal Supremo. Foi público e notório que o anterior presidente, Rui Ferreira, exerceu o cargo de forma manifestamente prepotente, alheia ao consenso necessário à reforma da Justiça em Angola, impondo as suas visões e atropelando qualquer tentativa de diálogo. Esse comportamento deu origem a uma contestação generalizada ao seu mandato, acabando por conduzi-lo à demissão. Aparentemente, no entanto, o novo presidente do Tribunal Supremo, o juiz conselheiro Joel Leonardo, quer repetir o figurino de Rui Ferreira.

Esperava-se que o novo presidente do Tribunal, Joel Leonardo, tivesse, no mínimo, o bom senso e a capacidade de ter aprendido com os erros do seu antecessor, e que inaugurasse um mandato pautado pelo objectivo de elevar uma Justiça desacreditada pelo colaboracionismo com um regime corrupto para um patamar de dignidade e procura de soluções harmoniosas dentro do corpo de juízes, promovendo a regeneração do sector. Não é, de todo, o que está a acontecer.

A reunião do Conselho Superior da Magistratura Judicial (CSMJ), a que Joel Leonardo presidiu no passado dia 16 de Dezembro 2019, revelou-se o perfeito exemplo da repetição das práticas de Rui Ferreira e de como os assuntos não podem continuar a ser conduzidos. O Maka Angola teve conhecimento de vários relatos privados e públicos sobre essa reunião.

O ponto em discussão nessa reunião era a alteração da composição da Comissão de Implementação da Reforma Judiciária (CIRJ), entidade criada pela Resolução do Conselho Superior da Magistratura Judicial n.º 11/18, de 28 de Agosto. Esta Comissão tem como principal função apoiar o Conselho na execução da implementação da reforma judicial em curso, designadamente na instalação dos Tribunais da Relação e de Comarca (ponto n.º 3 da Resolução). Embora funcionando na dependência do presidente do CSMJ (ponto n.º 4 da Resolução), que é por inerência o presidente do Tribunal Supremo, a sua criação e composição, designadamente a nomeação do presidente, foi determinada por acto do Plenário do Conselho; da mesma maneira, todas as dúvidas e omissões sobre os termos de funcionamento da Comissão devem ser esclarecidas pelo mesmo Plenário (ponto n.º 7 da Resolução). Daqui se depreende, portanto, que normativamente a responsabilidade sobre a determinação da Comissão está adstrita colectivamente ao Conselho.

A discussão e deliberação a ser tomada nessa reunião centrou-se na nomeação de um novo presidente da CIRJ. Mas aí, para espanto de todos, o novo presidente do Tribunal Supremo e do Conselho, Joel Leonardo, não colocou o assunto em discussão. Apenas apresentou um facto consumado: a nova presidente seria a juíza conselheira Teresa Marçal. Questionado sobre essa decisão unipessoal, Joel Leonardo afiançou tratar-se de um imperativo seu, justificando a nomeação ao dizer que tinha grande intimidade com a juíza conselheira, podendo telefonar-lhe a qualquer hora do dia ou da noite para discutir os assuntos. E assim Joel Leonardo impôs a sua vontade, não admitindo contestação, com o fundamento de poder telefonar à senhora a meio da noite.

A questão aqui não é, evidentemente, o perfil de Teresa Marçal, licenciada em Direito pela Universidade Agostinho Neto, tendo frequentado ainda, mas aparentemente sem terminar, o mestrado em Direito na Universidade de Coimbra. Foi desde 1989 uma activa advogada, tendo sido nomeada para o Tribunal Supremo em 2013. Independentemente do currículo, o problema, neste caso, é que a “intimidade telefónica” não é critério de nomeação para o cargo de presidente do CIRJ, e muito menos esta decisão compete unilateralmente ao presidente do Conselho Superior da Magistratura.

Se repararmos, a Lei n.º 14/11, de 18 de Março, Lei do Conselho Superior da Magistratura, define no seu artigo 35.º as competências do presidente do Conselho Superior. Nesse normativo, em termos de nomeações, apenas encontramos a possibilidade de o presidente o fazer em relação aos assessores do Conselho (alínea j) do artigo 35.º). Quanto às demais nomeações, dispõe apenas da faculdade de propor nomes ao Plenário do Conselho, como no caso do secretário executivo (alínea f). Por sua vez, como se mencionou acima, a criação e determinação da composição da Comissão de Implementação da Reforma Judiciária foi realizada pelo Plenário, nos termos das suas competências próprias, consolidadas nos artigos 23.º, o) e 38.º, n.º 1 da mesma Lei, não restando, assim, dúvidas de que qualquer modificação da composição da Comissão terá de ser feita nos mesmos termos, i.e., por deliberação do Plenário.

Consequentemente, Joel Leonardo não deveria nem poderia impor ninguém como presidente da Comissão de Implementação da Reforma Judiciária. Não tem competências nem poder para tal. Obviamente, a justificação “intimidade telefónica” não tem qualquer sentido e é até risível. É um abuso.

Talvez se perguntem qual o motivo para tanto barulho à volta de uma simples Comissão de um Conselho Superior? A resposta, como sempre, é simples: é uma questão de dinheiro. Esta Comissão tem milhões e milhões de kwanzas ao dispor para executar a reforma da Justiça, além de ter o poder de facto de instalação dos tribunais.

Até ao momento, as nossas fontes afirmam que a reforma da Justiça não passou de uma mudança de placas nas paredes de tribunais pintados de novo, mas velhos e sem material por dentro. A situação da Justiça continua caótica e sem condições. Só a adopção de mecanismos de transparência e controlo permitirão que esta reforma não seja mera cosmética, e que deixemos de ter espaço para decisões como esta de Joel Leonardo, com a mais ridícula justificação.

O novo presidente do Tribunal Supremo tem de ser um líder consensual, que abra a Justiça à sociedade civil, e a torne transparente, equilibrada e digna. Não precisamos de mais um predador que trata a Justiça como um campo privado de saque e rapina. Há que continuar, permanentemente, a corrigir o que está mal.

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