Procurador Liberta Violador de Criança

Com apenas 10 anos de idade, a filha de Ndongo  foi violada por um vizinho, Jeremias Morais, de 37 anos. Ouvido pelo procurador do Cuango, o violador foi libertado, porque, segundo as suas declarações, não danificou fisicamente a menina. A mãe e a criança contaram-nos como tudo se passou.

No dia 23 de Outubro, pelas 16h00, Ndongo (mantemos a identificação incompleta, de modo a preservar a privacidade da vítima) encontrava-se num posto médico, adoentada. A sua primogénita, de 13 anos, fazia tranças em casa de uma vizinha. A vítima,  que em seguida nomearemos apenas como menina, saiu ao encontro da irmã, para ir buscar as chaves de casa, quando o “tio Jeremias” a abordou na rua e a levou na motorizada.

Segundo a mãe da menina, corroborada pela esposa de Jeremias, este levou a menina para a sua casa. A sua mulher preparou funge com carne e os três jantaram juntos. “A mulher do Jeremias explicou-me que, como já escurecia, disse ao marido que acompanharia a minha filha à minha casa. O marido recusou e pediu-lhe para cuidar das crianças enquanto ele levaria a menina”, relata Ndongo.

Primeiro, Jeremias Morais andou às voltas com a menina, tendo esta manifestado o seu temor pelo desvio da rota de casa. “Fomos até ao hospital de mota (mototáxi). O tio mandou a mota embora. Perguntei como iríamos para a casa. Comecei a chorar, a dizer que queria ir para a casa e que me queixaria à minha mãe. O tio Jeremias disse que tinha de comprar medicamentos”, conta a menina.

A partir daí, argumentando com a falta de transporte, relata a mãe, Jeremias Morais levou a menina às costas e meteu-se pelo mato, tendo passado junto ao cemitério. “Ele disse à minha filha para se manter calada, para não chamar a atenção dos maus espíritos e da morte”, conta.

Quando se achava em local conveniente, atirou a menina ao chão e despiu-a, conforme testemunho da vítima. “Comecei a chorar. Ele tapou-me a boca e até me arranhou a boca. Começou a me fazer malcriado à frente e atrás e disse-me que se eu continuasse a chorar me mataria”, explica a menina ao Maka Angola.

“Ele [Jeremias] só estava a empurrar aquela coisa dele na minha vagina e atrás. Me mijou uma coisa tipo ranho branco na vagina”, narra a menina.

Por sorte, passaram nessa altura duas pessoas, que pararam para fazer as suas necessidades. “Quando ele ouviu barulho de pessoa a vir, saiu de cima de mim e disse-me para ficar deitada. Eu levantei, gritei e fugi”, prossegue a menina.

Tito Michel explica que ele e um amigo “estavam mesmo apertados” e se meteram pelo mato: “Ouvimos o grito da menina e perguntámos se era um feiticeiro, porque estávamos próximos do cemitério. A menina respondeu que não e gritou a dizer que estava a ser violada.”

Os dois homens, segundo a testemunha, aproximaram-se e viram um vulto a escapulir-se pelo mato escuro. “Vimos a menina ainda nua e ela começou a vestir-se. Ela correu e caiu. Socorremos a menina e não perseguimos o indivíduo [suspeito], porque não sabíamos se estava armado. Perguntámos à menina quem era a família. Nós conhecemos a mãe. Levámo-la para a casa da mãe”, conta Tito Michel.

Polícia mandata a mãe

Ndongo e familiares dirigiram-se ao Comando Municipal da Polícia Nacional no Cuango, para apresentar queixa.

“Mas no Comando responderam-me que a polícia não faz deslocações à noite. Os polícias disseram-me que, se eu tivesse homens, poderia ir capturar o Jeremias e entregá-lo à polícia”, revela a mãe.

Assim foi. Em companhia da irmã, do sobrinho e de duas sobrinhas, Ndongo seguiu o conselho da polícia e realizou a busca e a captura de Jeremias, em casa deste, tendo-lhe “dado um socos”. Ndongo desmaiou no decurso deste processo. Acto contínuo, o suspeito foi entregue à Polícia Nacional, que o encarcerou por duas noites.

“Levámos a menina ao hospital e fez-se o relatório. O médico disse-nos que o homem ejaculou no órgão genital da menina, sem penetração, porque não quis magoá-la”, explica a mãe, que se manifestou indignada por lhe ter sido recusada cópia do relatório. “O médico entregou apenas o relatório à Polícia”, confirma.

Passados dois dias, o procurador António Cândido ouviu o suspeito e ordenou a sua soltura, sem antes ter ouvido a vítima ou a sua família em contraditório.

Revoltada com a soltura do suspeito, Ndongo declara: “Fui à casa do procurador (sexta-feira, 25) e encontrei-o com o seu copo de vinho na mão. Perguntei-lhe se ele é procurador para os homens ou para os animais.”

“O procurador disse-me que o Jeremias confessou que ‘brincou’ apenas com a minha filha, mas não a aleijou. Pediu-me para ir ao seu gabinete, na segunda-feira. Perguntei-lhe se ele era corrupto e mostrei-lhe como o Jeremias arranhou a boca da minha filha no acto. A minha filha estava comigo”, continua.

Na segunda-feira (dia 28), Ndongo dirigiu-se ao gabinete do procurador. Como testemunhas da conversa encontrou na sala “duas senhoras, ambas de nome Bela; o Mário, guarda do procurador; o Gégé, empregado de limpeza, um homem do SIC e mais o senhor Africano”, conta.

Segundo a mãe da vítima, o procurador repreendeu-a, por tê-lo abordado em sua casa. “Ele disse que tinha de libertar o homem porque ele não danificou a minha filha. O médico disse que tocou apenas nos órgãos genitais dela e ejaculou”, afirma Ndongo.

“Disse-me que eu poderia queixar-me onde quisesse e ele devia meter-me na cadeia por ter ido à casa dele. Correu-me do gabinete e ordenou ao guarda dele para me meter na cadeia, no Comando Municipal”, denuncia Ndongo.

Em telefonema do Maka Angola, o procurador António Cândido foi lacónico: “Por questões de hierarquia e disciplina, deve contactar o procurador titular da província. É tudo.” Não foi possível contactar o procurador provincial, pelo que reservamos à instituição o direito de resposta.

Já no Comando Municipal, segundo a mãe, os investigadores do SIC informaram-na de que não a colocariam na cela, mas que a ouviriam novamente no dia seguinte. Na passada quarta-feira, Ndongo passou várias horas na esquadra à espera de ser ouvida, sem sucesso.

Tito Michel, uma das duas testemunhas presentes no local do crime, foi ouvido nesse dia por cerca de uma hora. “A menina tem 10 anos e sabe bem o que lhe aconteceu. Explicámos isso ao investigador e como a encontrámos.”

“A polícia me perguntou se ele [Jeremias Morais] me fez coisa de malcriado. Expliquei que sim, e que me fez atrás e à frente”, diz a menina sobre o seu testemunho ao Serviço de Investigação Criminal (SIC).

Algumas testemunhas que acompanharam Ndongo na expedição de “busca e captura” de Jeremias Morais, conforme instrução da polícia local, confirmam as declarações da esposa do suspeito, segundo as quais este “já tentou violar a sua própria filha menor e a cunhada”.  “A mulher disse que o marido é feiticeiro”, reafirmam as testemunhas.

Agora, a polícia exige novo relatório médico, o que deixa Ndongo manifestamente descontente. “O médico é o mesmo, e não nos quer dar cópia do relatório. Agora solicitou a presença de um colega norte-coreano, que se recusou a participar. Dizem-me que eu estou a complicar. Por que razão a família não tem direito a ler o que o médico escreveu?”, questiona a mãe.

Todo este caso e a maneira como as autoridades lidaram até ao momento com ele é trágico. Para começar, perante uma acusação desta natureza, os agentes policiais começam por incitar a cidadã, naturalmente revoltada, a capturar pelos seus próprios meios o indivíduo que violou a sua filha de 10 anos, sob o ridículo pretexto de a polícia não se descolar à noite. E isto ao mesmo tempo que a Polícia Nacional promove campanhas públicas de sensibilização para demover os cidadãos de fazerem justiça por mãos próprias.

Depois, um procurador solta um homem que violou uma criança, com base em declarações do próprio, segundo as quais não terá “magoado” a criança, ainda por cima, a avaliar pelas declarações da própria esposa do violador, havendo todos os indícios de perigo de reincidência.

Temos portanto mais um caso incompreensível do nosso sistema judicial. E assim vai o país, como diria um conhecido jornalista.

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