A Pulverização dos Tribunais Superiores em Angola
Foi com muito interesse que lemos o artigo recentemente publicado por António Rodrigues Paulo no Maka Angola, cujas ideias em boa parte subscrevemos, designadamente que a introdução dos “juristas de mérito” nos tribunais superiores como forma de combater o natural corporativismo judicial e refrescar as mentalidades se transformou numa manipulação desabrida do poder judicial por parte do poder político. Os “juristas de mérito” foram, essencialmente, comissários políticos de um executivo totalitário e temeroso da independência dos tribunais.
No entanto, para que a ciência evolua, são mais importantes a disputa e a discussão do que a concordância e aquiescência, razão pela qual nos vamos debruçar sobre aquela parte do artigo de Rodrigues Paulo que nos levanta dúvidas: a da excessiva “pulverização de tribunais superiores”.
Parece afirmar Paulo que, em Angola, há tribunais superiores a mais, elencando os seguintes: Tribunal Constitucional; Tribunal Supremo; Supremo Tribunal Militar; Tribunal de Contas; e o novo Supremo Tribunal Administrativo, Fiscal e Aduaneiro, ainda não institucionalizado. E deduz-se deste elenco que o autor pretenderia ver diminuído o número de tribunais superiores.
Não podemos acompanhar Rodrigues Paulo nesta análise, a não ser utilizando argumentos financeiros e de recursos humanos. Se não existe dinheiro para criar tribunais, nem pessoas com capacidade para ocupar as funções judiciais, não se devem estabelecer vários tribunais superiores. Um tribunal que trate de tudo chegaria. No entanto, acreditamos que a presente crise financeira angolana não é crónica, isto é, podendo ser resolvida com vontade política e sapiência técnica, para o que não faltarão quadros judiciais competentes e ávidos de exercer as suas funções com dignidade. Nessa medida, ultrapassados esses obstáculos, poderemos reflectir acerca da designada “pulverização dos tribunais superiores” em Angola.
O tema é, manifestamente, político e permite uma equação simples: quantos mais tribunais superiores existirem, mais difícil será ao poder político controlá-los. Portanto, a existência de vários tribunais superiores é uma garantia de democracia e liberdade. Um tribunal superior é fácil de controlar, dois também. Veja-se como José Eduardo dos Santos facilmente dominou o Tribunal Supremo e o Tribunal Constitucional. Veja-se, num país democrático como os Estados Unidos da América, como Donald Trump pretende preencher vários lugares do Supremo Tribunal de Justiça, para assim estabelecer uma maioria conservadora que determinará as decisões fundamentais do poder judicial norte-americano.
Parece que se pode estabelecer uma espécie de lei: quanto menor for o número de tribunais superiores, mais fácil é o seu controlo pelo poder, mais fácil é a ditadura.
Vejamos agora o exemplo oposto. A República Federal da Alemanha. Como é sabido, a Alemanha viveu debaixo do nazismo nos anos 30 e 40 do século XX. Derrotada e devastada após o final da Segunda Guerra Mundial, em 1945, teve de se reconstruir e tentou, com a ajuda imposta de vários constitucionalistas estrangeiros, arquitectar um sistema constitucional que evitasse em definitivo qualquer pulsão demagógica ou prussiana conducente à instauração de uma ditadura totalitária tão horrível como o nazismo.
As soluções encontradas foram várias, desde o federalismo até ao bicameralismo, passando pela criação do conceito constitucional de democracia militante.
Além disso – e este é o aspecto que aqui nos interessa – uma das soluções encontradas foi a criação de uma plêiade de tribunais superiores, devidamente instalados em cidades diferentes.
A Alemanha tem, obviamente, o Tribunal Constitucional, com as competências definidas no artigo 93.º da Lei Fundamental (Constituição), ao qual compete dirimir as questões constitucionais e que tem sede em Karlsruhe, uma média cidade alemã com 300 mil habitantes. Depois, de acordo com o artigo 95 (1) da Lei Fundamental alemã, existem cinco tribunais supremos estabelecidos pelo Governo Federal: o Supremo Tribunal Federal de Justiça (sede, também, em Karlsruhe), Tribunal Administrativo Federal (sede em Leipzig), Tribunal Federal de Finanças (sede em Munique), Tribunal Federal do Trabalho (sede em Erfurt), Tribunal Social Federal (sede em Kassel). Estes tribunais constituem os tribunais superiores da jurisdição ordinária (civil e criminal), administrativa, financeira (fisco e aduaneiro), do trabalho e da previdência. Além do mais, nos termos do artigo 114.º (2) existirá o designado Tribunal de Contas, que é sempre um pouco diferente de um tribunal tradicional.
Em resumo, além do Tribunal Constitucional, e não contando com o Tribunal de Contas, existem cinco tribunais superiores de última instância na Alemanha.
A explicação político-jurídica para esta proliferação judicial assenta em larga medida na necessidade que os obreiros da lei constitucional sentiram de evitar acumulações de poder e possibilidades de interferência de novos Hitlers no curso da justiça. Obviamente, também há razões históricas e de especialização jurídica que justificam esta opção germânica, mas do ponto de vista da arquitectura constitucional o aspecto mais importante está na defesa contra tentações totalitárias.
Em relação a Angola, imaginamos uma miríade de razões que apontam contra uma solução deste tipo. Contudo, depois de 37 anos de regime autoritário, e de existência de um modelo político-administrativo excessivamente centralizado, o melhor conselho que podemos dar é o de testar uma experiência de pluralismo judicial, de “pulverização” dos tribunais superiores com sede em cidades diferentes de Angola, de forma a impossibilitar qualquer controlo dos tribunais e evitar a existência de “sobas” legais que tudo querem dominar.