As Fragilidades do Novo Estatuto dos Magistrados Judiciais

Está neste momento em discussão, na Assembleia Nacional, uma proposta de lei orgânica que aprova o Estatuto dos Magistrados Judiciais.

Esta proposta foi apresentada por uma denominada Comissão de Implementação da Reforma Judiciária, e não pelo ministro da Justiça. Porém, o mais elementar decoro constitucional exigiria que, mesmo tendo sido preparada por uma comissão, ela fosse primeiramente enviada ao ministro, o qual, por sua vez, a adoptaria (ou não) e colocaria à discussão pública, para posterior aprovação na Assembleia Nacional. A fonte da proposta deveria estar no ministro, e não numa comissão.

Em conteúdo, há muitos aspectos a criticar na proposta de lei. Desde logo, a atribuição do direito, por parte dos magistrados, a 12 subsídios diferentes (artigo 20.º), quando teria muito mais lógica conferir-lhes um ordenado elevado e digno do que inventar subsídios que se perderão nos labirintos da burocracia. Além disso, a composição e categorização dos magistrados sugerida na proposta já não responde aos desafios da contemporaneidade, limitando-se a imitar os usos da velha potência colonial (artigo 3.º): admitem-se apenas juízes conselheiros do Tribunal Supremo, juízes desembargadores do Tribunal da Relação e juízes de direito do Tribunal de Comarca, o que é totalmente anacrónico.

Mas o tema específico sobre o qual gostávamos agora de nos debruçar é o dos juristas de mérito. O artigo 38.º, n.º 1, c) da proposta de lei dispões que “os juristas de mérito com um mínimo de 20 anos de actividade profissional e com pelo menos o grau de mestre” poderão concorrer para juízes conselheiros. Mais adiante, admite-se que um terço das vagas possa ser preenchido por estes juristas de mérito.

Em teoria, é positivo ter juristas de mérito no Tribunal Supremo. Estes juristas trarão um “vento fresco” e uma perspectiva diferente à mais alta instância judicial do país. A questão é que, na verdade, os juristas de mérito podem ser uma forma de outros poderes ou interesses controlarem ou condicionarem o poder judicial. Uma forma de criar um corpo de vigilantes infiltrados entre os juízes de carreira.

Vejamos. Segundo a proposta de lei, um jurista de mérito terá de ter 20 anos de actividade profissional e o grau de mestre. Se a primeira exigência se percebe, não se percebe a relevância do grau de mestre. Podem existir advogados licenciados com uma carreira de excelência e sem o grau académico de mestre. Contudo, a dificuldade está nos requisitos concretos para se chegar o jurista de mérito. Ou o mesmo se destacou dos seus pares pela qualidade e competências profissionais demonstradas no exercício da sua actividade e com pelo menos cinco obras científicas, ou tem prática forense nos tribunais nacionais com pelo menos 20 anos e uma conduta idónea certificada pela Ordem dos Advogados.

É muito difícil enquadrar objectivamente estes critérios. O que serão obras científicas para os efeitos da lei? Uma colectânea de legislação, área em que se especializam muitos dos doutores lusófonos, será considerada uma obra científica? Talvez se anotada… Um manual repetitivo de matérias jurídicas será “científico” ou meramente uma facilitação pedagógica?

E não podemos deixar de vislumbrar algo de perturbador na exigência contida na alínea b) do n.º 2 do artigo 38.º, que obriga a deter um “certificado de bom comportamento” passado pela Ordem dos Advogados. Isto quer dizer que um advogado só pode ascender ao Tribunal Supremo se a Ordem quiser…

Facilmente se percebe que as regras sobre os juristas de mérito não são regras propriamente ditas, mas sim panos de fundo abstractos que permitem a entrada no Tribunal Supremo de elementos politicamente convenientes ao poder que controla o Conselho Superior da Magistratura.

Portanto, aquilo que seria à partida uma boa ideia – a entrada de elementos externos à magistratura para o Tribunal Supremo, abrindo-o à sociedade – pode ser apenas um mecanismo de vigilância não controlado, dotando as chefias judiciais de poderes acrescidos e, em última análise, violando os princípios de independência interna da magistratura judicial.

A nomeação destes altos cargos judiciais faria muito mais sentido se fosse levada a cabo por uma comissão independente, que não dependesse da orgânica interna da magistratura judicial e que fosse constituída por membros das profissões jurídicas e da sociedade civil. Só assim se pode garantir o princípio da porta aberta à sociedade. Perante todas estas fragilidades e perigos, parece-nos fundamental que a proposta de lei sobre o Estatuto dos Magistrados Judiciais seja agora devidamente escrutinada e melhorada pela Assembleia Nacional.

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