José Eduardo dos Santos a Contas com a Justiça

O dia 9 de Agosto de 2019 pode ser histórico para a justiça angolana.

Recentemente, o DNIAP (Direcção Nacional de Investigação e Acção Penal do Ministério Público) emitiu uma convocatória para ouvir o antigo presidente da República, José Eduardo dos Santos (JES), no âmbito de processos criminais que estão em curso.

Como é do conhecimento público, quer no processo da transferência de 500 milhões de dólares para Londres, quer no processo de Augusto Tomás referente Conselho Nacional de Carregadores, quer em todos os outros que envolvem figuras cimeiras do Estado, o nome de José Eduardo dos Santos como mandante, concordante ou consciente dos actos surge em permanência. No final da linha está sistematicamente um despacho, uma ordem, um decreto, uma instrução do antigo presidente.

Na verdade, não é possível investigar e chegar à verdade acerca da corrupção e do sistema de saque do Estado instalado em Angola sem ouvir José Eduardo dos Santos: saber o que autorizou, o que não autorizou, onde foi conivente, onde foi enganado, onde foi o principal marimbondo, onde ignorou tudo. O seu papel é central nesta longa história.

Nesse sentido, o DNIAP agiu de acordo com os parâmetros exigidos pelo direito processual penal ao querer ouvir José Eduardo dos Santos. É importante para os vários processos em curso saber o que o antigo presidente tem a declarar e, sobretudo, é fundamental para a nação confrontar-se com o seu passado e com a verdade, o que só pode ser feito a coberto do testemunho de JES.

À parte aspectos protocolares, que não vamos aqui dissecar, convém clarificar que JES não goza de qualquer imunidade especial enquanto ex-presidente pelos actos que praticou no exercício das suas funções. Ao contrário do que habitualmente se diz, a imunidade presidencial para actos públicos é bastante restrita, pelo que o DNIAP tem plena liberdade para o convocar, ouvir como testemunha, ou mesmo para o constituir como arguido, sem pedir autorização a qualquer órgão de soberania.

A Constituição de 2010 (CRA) prevê dois tipos de imunidades para antigos presidentes da República relativamente a potenciais crimes. A imunidade referente a crimes estranhos ao exercício das suas funções e a imunidade relativa a actos ligados às funções presidenciais.

No caso dos crimes estranhos ao exercício das suas funções, aplica-se o artigo 127.º, n.º 3 da CRA, que determina que “o Presidente da República responde perante o Tribunal Supremo, cinco anos depois de terminado o seu mandato”. Por exemplo, imaginemos que a mulher de um presidente o acusava de crime de violência doméstica, por lhe ter batido com uma garrafa de uísque vazia dentro do Palácio. Este é um crime privado, em nada ligado ao exercício das funções presidenciais. Assim, o ex-presidente seria submetido a julgamento cinco anos após o final do mandato presidencial. Subscrevemos uma interpretação restritiva deste artigo, a qual não abordaremos neste texto, uma vez que não é relevante para o caso.

Já em relação a crimes praticados no exercício das suas funções, como o potencial envolvimento de JES em desvios de fundos, uso inapropriado de bens públicos, abuso de poder, entre outros, a CRA contempla dois regimes distintos.

Enquanto exerce funções, o presidente está reforçadamente imune, só podendo ser demandado nos termos do artigo 129.º da CRA. Na prática, atendendo à maioria qualificada que o MPLA detinha na Assembleia Nacional durante os tempos de JES, este gozava de imunidade absoluta.

Deixando de ser presidente, há uma redução drástica das imunidades. JES apenas goza das imunidades concedidas aos deputados pelo facto de ser membro do Conselho da República (Cfr. artigos 135.º e 150.º da CRA por remissão).

Quer isto dizer que o ex-presidente pode ser convocado para depor como testemunha, nos termos da lei processual, pode ser constituído arguido e pode mesmo ser acusado da prática de crimes, sem carecer de qualquer acordo da Assembleia Nacional ou gozar que qualquer imunidade. E não é preciso deixar passar qualquer período de tempo, nem cinco anos, nem cinco dias.

A imunidade só existe para a pronúncia e prosseguimento do processo para julgamento. Neste caso, a Assembleia Nacional tem de autorizar o procedimento (artigo 150.º, n.º 3).

Sumariando, quer isto dizer que JES não goza de quaisquer imunidades naquilo que respeita ao seu dever de prestar esclarecimentos no âmbito de processos criminais em curso, podendo ser notificado e estando obrigado a prestar o depoimento nas formas prevista na lei.

José Eduardo dos Santos está em Espanha desde Abril passado. É possível que, por motivos de saúde ou por vontade própria, não regresse a Angola, remetendo-se ao auto-exílio e assim se juntando às suas filhas Isabel e Tchizé. Desse modo, o ex-presidente evitaria ser confrontado com os seus desmandos pela justiça angolana. Se for esse o caso, a família Dos Santos será uma família em fuga desesperada.

Este é o tempo da verdade em Angola. Apoiemos o funcionamento da justiça, que só agora começa a dar os primeiros passos no sentido da independência, da imparcialidade e da descoberta da verdade acerca dos últimos anos de desgoverno em Angola.

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