O Desprezo e a Vingança do Ministro do Interior

No Hospital Prisão de São Paulo (HPS) há uma divisão clara entre a ala dos pobres e a ala dos especiais. A demissão arbitrária da directora Ivone Bragança de Vasconcelos Otuo vem expor a podridão que corrói o Ministério do Interior.

Comecemos pela directora. A 17 de Abril passado, o ministro do Interior, Ângelo Barros de Veiga Tavares, demitiu a directora Ivone Otuo por esta ter cumprido com o seu juramento de Hipócrates, prestando a devida assistência ao recluso Joaquim Sebastião, e por ter emitido uma informação médica a respeito.

Já as redes sociais fervilhavam com a ordem de demissão, e Ivone Otuo continuava no seu posto, sem qualquer decisão oficial. A 21 de Abril, o secretário de Estado do Interior para os Serviços Prisionais, José Bamoquina Zau, comunicou-lhe pessoalmente a ordem ministerial, sem no entanto lhe ter entregado o despacho formal de demissão.

Médica há 25 anos, com passagens pelo Hospital Josina Machel, Multiperfil e Clínica da Chevron, a intendente prisional serviu durante 15 anos o HSP, cinco dos quais como directora.

Na manhã de 20 de Março passado, o recluso Joaquim Sebastião, antigo director do Instituto Nacional de Estradas de Angola (INEA), teve uma crise durante o seu interrogatório no Serviço de Investigação Criminal (SIC). Joaquim Sebastião sofre de cancro na próstata. É suspeito de ter desviado o equivalente a dez milhões de dólares, entre 2007 e 2008, com base num relatório de 2009 da Inspecção-Geral da Administração do Estado. Encontra-se detido desde Janeiro passado.

Mal recebeu informações sobre a ocorrência, Ivone Otuo, de acordo com o seu depoimento ao Maka Angola, orientou o instrutor do processo a acompanhar Joaquim Sebastião a uma clínica privada, para ser assistido com urgência.

Contrariando esta instrução de urgência, o SIC devolveu o detido ao HPS ao fim do dia. Nessa altura, a directora já se tinha ausentado. “O detido estava em estado de choque, com dores intensas e tensão arterial bastante elevada. As minhas colegas ligaram-me a pedir orientação. Como o HPS não tem condições básicas para atender casos dessa natureza, autorizei que fosse levado a uma clínica privada, onde foi prontamente socorrido”, explica.

Passadas três horas, o paciente recebeu alta e retornou ao hospital-prisão. No dia seguinte, a 21 de Março, a médica-directora visitou o paciente pelas 6h30 e, refere, este continuava a apresentar um quadro clínico delicado, com a tensão arterial a rondar os 160. “Evacuei-o para o Hospital Militar Central, onde foi atendido pelo mesmo médico que o observou na Clínica Sagrada Esperança, o urologista Mingi Sebastião.”

No seu relatório, o urologista recomenda uma “intervenção cirúrgica logo que possível”, para evitar complicações do quadro clínico apresentado.

Nesse mesmo dia, os advogados de Joaquim Sebastião solicitaram informação médica sobre o estado de saúde do seu constituinte.

Ivone Otuo esclarece, entretanto, que comunicou antecipadamente a sua decisão de evacuação do detido, nas duas ocasiões, ao director-geral dos Serviços Prisionais, comissário Jorge Mendonça.

“Nós temos autonomia para emitir relatórios médicos”, justifica a médica.

Esse relatório ditou, sem apelo nem agravo, a sua queda. Após a descrição detalhada do quadro clínico de Joaquim Sebastião, as médicas Felismina António e Ivone Otuo concluíram haver “situação clínica emergente que pode pôr em perigo a vida do paciente, pelo que recomendamos tratamento em clínica especializada”.

Por conta dessa conclusão, a mando do ministro do Interior, foi instaurado um inquérito a Ivone Otuo. Os interrogatórios frequentes decorrem há cerca de três semanas, sob liderança do comissário Moreira Muambanji, auxiliado pelo intendente Mangueira, que não são médicos.

“Interrogam-nos sobre procedimentos e actos médicos, sem que tenham noções elementares de medicina”, denuncia a médica.

Um especialista revela que o interrogatório de médicos acerca de procedimentos e actos médicos, quando feito por desconhecedores da profissão, “só pode ser mais uma das comédias habituais das nossas autoridades”.

Um dos pontos incisivos da “comédia” é o facto de o paciente continuar a circular pelo próprio pé. “Para quem é leigo, se o paciente não está em coma é porque não está em estado grave. Esta é a lógica do inquérito”, refere a médica Ivone Otuo.

É evidente que uma inspecção sobre actos médicos não pode ser realizada apenas por não médicos. Trata-se de uma pura ilegalidade, pois viola o princípio da imparcialidade, uma vez que quem não sabe do que fala não pode ser imparcial, apenas fundamentando as suas decisões em inclinações subjectivas, palpites ou ordens superiores, mas nunca numa avaliação objectiva dos factos.

Até ao primeiro trimestre de 2018, o sistema penal em Luanda registava, em média, a morte de três reclusos por dia, sobretudo por tuberculose.

Ivone Otuo lamenta apenas que o ministério nunca se tenha preocupado ou questionado sobre os relatórios médicos e a situação dos reclusos pobres. “Muitas vezes nem dinheiro temos para enterrar os mortos, e quem se preocupa com isso?”

Apesar de ser designado como “hospital”, o estabelecimento prisional de São Paulo é-o mais de nome do que na prática. Não tem orçamento, nem sequer um fundo de maneio. Em situações de emergência, sobretudo quando se trata de doentes mais desfavorecidos, são os funcionários do hospital e os reclusos sensíveis quem contribui para a compra de medicamentos e do material necessário. Quanto aos presidiários privilegiados ou com recursos financeiros, podem pagar pelo seu próprio tratamento em clínicas privadas. Diariamente, os familiares dos reclusos também têm de lhes providenciar alimentação. Os mais desfavorecidos ficam à mercê da fome ou da solidariedade dos “co-sofredores”, como se identificam os presos entre si.

Em tempos, escrevemos no Maka Angola que os (ex-)detentores de cargos públicos a contas com a justiça devem contribuir para a melhoria do sistema penal. O Hospital Prisão de São Paulo vive de doações, e tem tido uma figura catalisadora para o seu bom funcionamento: o ex-comandante provincial de Luanda, comissário Joaquim Ribeiro, que cumpre uma pena de 15 anos[M.A.1] .

Por solicitação de Joaquim Ribeiro, há dias, Joaquim Sebastião doou medicamentos ao HPS, no valor de cerca de três milhões de kwanzas, para acudir a “ala dos pobres”.

Há uma conhecida cruzada pessoal de Ângelo Barros de Veiga Tavares contra Joaquim Sebastião. Mas este não é o fórum para abordar questiúnculas pessoais, assim como os poderes públicos não devem ser usados de forma abusiva.

Uma intriga palaciana, que várias fontes alegam ser alimentada por disputas passionais entre Tavares e Sebastião, parece ser a única explicação para que um relatório de 2009 esteja a servir para um inquérito em 2019. Este caso é bizarro, sobretudo tendo em conta a decisão do Tribunal Constitucional, no famoso acórdão sobre o caso Quina da Silva, quando declarou inconstitucional a instrução de processos-crime assentes em relatórios administrativos em que vigore o princípio da cooperação. O relatório, desenterrado de um arquivo poeirento para a investigação em curso, apresenta uma base frágil e possivelmente inconstitucional.

A desumanização na cadeia, verificada no caso de um detido necessitar de sérios cuidados médicos, também em nada contribui para que se faça justiça.

Não há dúvidas de que deve ser levada a cabo uma investigação séria sobre todos quantos “mamaram” no INEA, incluindo Joaquim Sebastião e os seus então superiores, o general Higino Carneiro e o já conhecido Carlos Baptista Gomes “Charles”. Por ora, todos os detidos devem ser tratados de forma humana, sobretudo os pobres ignorados pelo ministro e sua equipa.

Convém recordar ao ministro Ângelo Barros de Veiga Tavares a situação de cárcere do ex-comandante Joaquim Ribeiro, do ex-ministro Augusto Tomás e, até recentemente, do filho de José Eduardo dos Santos, Zenú. O comissário Veiga Tavares poderá, um dia, como qualquer outro cidadão, ver-se também na condição de recluso.

O ministro deve ainda lembrar-se das palavras do seu próprio presidente e comandante-chefe, general João Lourenço: “Ninguém é rico ou poderoso demais para se furtar a ser punido, nem ninguém é pobre demais ao ponto de não poder ser protegido.”

Estamos atentos!


 [M.A.1]Acrescentei informação

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