Juiz Atenta contra Justiça
O juiz António Francisco, da 13ª Secção dos Crimes Comuns do Tribunal Provincial de Luanda, no Kilamba Kiaxi, protagonizou hoje mais um episódio inacreditável de abuso de autoridade.
Deveria ter começado hoje o julgamento de João Sonhi, membro da Igreja Adventista e oitavo réu do já conhecido caso do rapto inventado pelo ex-pastor Daniel Cem. João Sonhi encontra-se actualmente internado na Clínica Meditech. O seu advogado, Vicente Pongolola, dirigiu-se logo pela manhã ao tribunal com um pedido de adiamento do julgamento, tendo levado o atestado médico de internamento do seu cliente.
No seu despacho, o juiz decidiu suspender a audiência de julgamento, marcando-a para o próximo dia 26. “Caso o réu não volte a comparecer na próxima audiência, será alterada a medida de coação que lhe foi aplicada por prisão”, escreve. O juiz António Francisco determina, ainda, que “deverá o réu apresentar-se a este tribunal todo os dias, a partir de amanhã, dia 23, até o dia da próxima audiência, faltando uma aplicar-se-á a medida de coação de prisão (…)”.
“Olha como somos tratados em Angola, estou eu internado na Clínica, ligado aos soros, e tenho de ir amanhã me apresentar no tribunal. Onde estão os direitos humanos neste país?”, desabafa João Sonhi.
Será que o juiz António Francisco considera razoável que um paciente seja levado de ambulância ao tribunal, todos os dias, para lhe satisfazer a vontade?
Como já aqui escrevemos, em 29 de Dezembro de 2017, António Francisco foi responsável pela condenação de seis dirigentes da Igreja Adventista, sem para isso ter tido conhecimento de quaisquer provas e sem ter estabelecido qualquer nexo de causalidade.
O acusador Daniel Cem, os seus familiares e altos responsáveis do SIC torturaram pessoalmente, de forma bárbara, durante 15 horas consecutivas, o malogrado João Dala para lhe extorquirem uma confissão como o autor material do rapto.
A 21 de Fevereiro passado, o juiz António Francisco pronunciou João Sonhi, que havia sido afastado do processo.
Todavia, a 29 de Abril de 2018, o Ministério Público emitiu um despacho de abstenção do caso e declarou como extinto o procedimento criminal contra João Sonhi.
Recuando na sua decisão, o mesmo Ministério Público acusou João Sonhi de rapto a 9 de Outubro de 2018. Esta acusação e pronúncia levantam duas dúvidas muito claras.
Como provas, foram apresentadas tão-somente duas declarações. Na primeira, o irmão de Daniel Cem, Henrique Carlos Quissola “CarlosCem” (que também torturou João Dala), disse que ouviu quando estava ao telefone a menção ao nome de João Sonhi num contexto que não sabe esclarecer. Na segunda, um arguido também mencionou o nome de João Sonhi sem qualquer valor probatório.
“Estou a preparar uma participação criminal contra o juiz António Francisco, que dará entrada na Direcção Nacional de Investigação e Acção Penal (DNIAP), com cópia para o procurador-geral e para o presidente do Tribunal Supremo”, protesta o advogado Vicente Pongolola.
“Verifico que há actos de corrupção, de abuso de poder e de autoridade, bem como de prevaricação por parte do juiz”, explica o advogado de João Sonhi.
Segundo Vicente Pongolola, “o juiz já está a abusar de toda a gente. Já é demais. Apresentei o atestado médico da Clínica Meditech, sobre o internamento do meu cliente, e o juiz faz este despacho absurdo. O sistema tem de ter capacidade responsabilizar os juízes”.
O advogado lamenta o silêncio, que considera cúmplice, do Conselho Superior da Magistratura Judicial sobre as participações dos advogados dos réus contra o juiz pelas suas gritantes arbitrariedades. “É uma pena que o combate à corrupção ainda não tenha chegado à magistratura”, denuncia.
O rapto inventado
Como já reportámos, a invenção do rapto foi de tal forma incompetente, que nem houve qualquer cuidado com a lógica. A 29 de Outubro de 2015, por volta das 7h00 (sete da manhã), o tenente-coronel Domingos Terça Massaqui, do Estado-Maior das FAA, apresentou uma queixa ao Departamento de Investigação Criminal do Kilamba Kiaxi pelo “rapto” do seu tio Daniel Cem.
Durante esse mesmo dia, Daniel Cem esteve reunido com os líderes da Igreja Adventista, para debater a aplicação de 100 milhões de kwanzas na construção da universidade adventista no Talatona. Quando o tenente-coronel apresentou queixa, foi ao pormenor de identificar a viatura usada no “rapto”. Ignorou, no entanto, o pormenor de que o tio saiu mais tarde de casa para ir à reunião, que durou até às 16h00. Às 19h00 do mesmo dia, Daniel Cem comunicou finalmente aos seus familiares que tinha acabado de ser raptado.
O mais grave foi a forma como Daniel Cem, em conluio com os chefes do Serviço de Investigação Criminal (SIC), fabricou as provas, a custo da vida de João Dala, conforme os extractos que abaixo publicamos, mais uma vez.
Quando o pastor tortura
João Dala apercebeu-se também da presença, na sala para onde o encaminharam, do pastor Daniel Cem, acompanhado pelo seu irmão Henriques Carlos Quissola (mais conhecido por Carlos Cem) e dois sobrinhos, nomeadamente o tenente-coronel Domingos Terça Massaqui Roberto Cem Pinto Leite. O tenente-coronel é o mesmo que apresentou a queixa denunciando o alegado rapto, 12 horas antes de o mesmo ter acontecido, e informou a polícia de que a viatura era um Toyota Tundra.
“O pastor disse que eu era seu irmão e nada tinha a ver com o caso. Mas, ao revistarem o carro, encontraram cópia de uma carta anónima, com a qual ele tinha sido confrontado na reunião da igreja, a desmascarar o rapto como uma simulação sua e da sua família.”
Carlos Cem, irmão do pastor, deu início às hostilidades, tendo esmurrado João Alfredo Dala ao ponto de lhe arrancar um dente, conforme depoimento deste. “O Carlos Cem disse-me que é poderoso em Luanda e controla a polícia.” João Dala caiu no chão com o vigor dos socos. Foi então a vez de o pastor Daniel Cem, diante dos chefes do SIC, prosseguir com a pancadaria, pontapeando o detido na cara repetidas vezes, como este denuncia.
João Dala garante que o pastor e o irmão prometeram oferecer-lhe um apartamento no Kilamba, 50 milhões de kwanzas e dois a três meses de prisão efectiva, caso denunciasse, em vídeo, os pastores Teixeira Vinte, Adão Hebo (administrador financeiro da região norte da Igreja), assim como os irmãos João Sonhi e Garcia José Dala, como co-autores do suposto rapto. “Eu nem sequer conhecia os últimos dois.” Caso contrário, prometeram-lhe que “seria a tortura até à morte”.
Tanto o pastor Daniel Cem como o tenente-coronel Domingos Terça Massaqui declinaram apresentar a sua versão dos factos ao Maka Angola.
João Dala recusou-se a gravar “tal mentira”.
A tortura do pénis
“O pastor Cem ordenou ao superintendente Fernando Receado que me amarrassem no formato de tortura do avião ‘Kadiembe’. Mas o chefe de operações do SIC optou antes pela tortura do pénis.”
Segundo o detido, “o Pinto Leite retirou os atadores dos seus ténis Converse, amarrou os atacadores um ao outro, para o fio ficar comprido. O chefe Fernando Receado foi quem pessoalmente amarrou o fio no meu pénis e foi o primeiro a começar a puxar e a correr comigo à volta da sala, enquanto o pastor Daniel Cem e o irmão diziam que eu falaria rápido e todos se riam”.
Os chefes da investigação e os acusadores revezaram-se então, solidariamente, a torturar o detido. “Depois do chefe Receado, foi o Carlos Cem a pegar no atacador amarrado ao meu pénis e a começar correr comigo pela sala, a puxar. A seguir foi o Noé (SIC, Cacuaco)”.
Todavia, “o pastor reclamou que não me estavam a puxar bem, e recebeu o atacador e começou a correr na sala a puxar-me com muita violência. Eu estava a sentir a bexiga como se estivesse a cortar. O tenente-coronel Terça Massaqui pegou na corda e começou a puxar com extrema violência e perguntar-me se doía. Ele já não correu”.
A seguir foi o superintendente-chefe Pedro Lufungula a puxar o pénis do detido pela corda. “Então, pediram ao Pinto Leite para ir buscar um bloco de cimento que estava na porta. Amarraram o atador ao bloco de cimento e obrigaram-me a correr na sala, com o bloco amarrado ao pénis. Eu já não aguentava. Não conseguia sequer dar um passo. Então batiam com força nas orelhas, por detrás, e eu caía e rebolava com bloco”, afirma.
“Nessa altura, eu, que tenho 1,75 cm, tinha o meu pénis já esticado até ao joelho”, acrescenta, mostrando-nos as fotos chocantes, sobre as quais falaremos mais adiante.
“Foi então que vi o próprio Ngola Kina a chorar e a pedir ao superintendente Fernando Receado, o chefe do Gabinete de Operações do SIC, para que me desamarrassem os atacadores e parassem com a tortura do pénis, porque eu poderia morrer”, explica.
Já eram sete horas. O pastor saiu com os seus acompanhantes, disse que iria pregar nesse dia e deixou ordens para que a tortura continuasse até haver uma confissão em vídeo, envolvendo os outros pastores. “Referiu que eu bem poderia morrer, ele assumiria”, diz. &a.stopI