General Higino Carneiro: o Vácuo da Soberba

Corria o ano de 2013. O general Higino Carneiro, na altura governador do Kuando-Kubango, era um dos homens mais poderosos de Angola. Quando o “homem grande” caminhava, fosse em Angola, fosse em Portugal, a terra tremia sob o peso da sua importância.

Em Lisboa, no Departamento Central de Investigação e Acção Penal, corria um processo de inquérito criminal com o n.º 142/12.0TELSB contra o general Higino Carneiro, por suspeita de branqueamento de capitais. Era um daqueles processos que teriam o destino típico na época: o arquivamento ou o esquecimento. Nesse tempo, numa peça simbolicamente inacreditável, o advogado do general, Paulo Amaral Blanco, veio requerer o arquivamento desses autos. Ao lermos hoje essa peça, o que impressiona não são os argumentos jurídicos ou a elegância do raciocínio apresentado, que aliás não existem, mas sim a arrogância brutal, a soberba destes homens que se julgavam donos do mundo.

Começa o requerimento por dizer que o inquérito em curso em Portugal contra Higino Carneiro devia ser arquivado, porque o general “possui um vasto curriculum vitae, obtido na antiga União Soviética e, posteriormente, em Angola, onde desempenhou vários cargos militares e políticos”. Na perspectiva do advogado, portanto, o facto de ter estado a fazer algo na União Soviética e de ter desempenhado cargos em Angola seria razão para arquivar um processo-crime em Portugal! .

Os crimes são actos puníveis que as pessoas praticam, independentemente da sua categoria social, económica ou política. Estas categorias apenas poderão relevar para contextualizar as intenções do arguido e fixar a medida da pena. Não têm qualquer relevância para a determinação da culpa ou da inocência. Mas vê-se que a elite angolana não pensa assim. Basta ser um “homem grande” para não se ser submetido à justiça. Pensavam assim, e ainda pensam. É por isso que a actuação de João Lourenço contra a corrupção os deixa perplexos. Um homem com currículo obtido na União Soviética e que tenha ocupado vários cargos políticos e militares não deveria ser importunado por uns magistrados quaisquer, que provavelmente nunca assistiram às brilhantes demonstrações do poder soviético na Praça Vermelha, em Moscovo.

Voltando ao requerimento, tentava-se desmanchar a credibilidade do denunciante (embaixador Adriano Parreira) e de uma testemunha da acusação (Rafael Marques de Morais). Sobre Adriano Parreira, através do seu advogado Paulo Amaral Blanco, o general Higino Carneiro afirmava que era da UNITA e tinha sido condenado judicialmente em Luanda. Portanto, Parreira apenas visava “enlamear o nome de PEPs [Pessoas Expostas Politicamente] em Angola, todos eles ligados ao MPLA, e perturbar e condicionar o MPLA e o seu líder”.

O raciocínio era o seguinte: acusar o general Higino Carneiro é acusar o MPLA, consequentemente, é ilegítimo. Volta-se agora a defender o argumento de que os dinheiros desviados por Higino foram para o MPLA, promovendo a fraude eleitoral. Obviamente, tais especulações são desmentidas pelas autoridades oficiais.

Sobre Rafael Marques, o general Higino Carneiro defendia que este teria “feito acusações sobre factos fantasiosos de corrupção”. Como está hoje mais do que comprovado, as denúncias publicadas por Rafael Marques obedeceram a rigorosos critérios jornalísticos e são confirmadas pelas variadas investigações judiciais lançadas pela Procuradoria-Geral da República.

Mais adiante, o mandatário do general Higino Carneiro brinda as autoridades portuguesas com um “mimo” que as deve ter feito corar de vergonha. Escreve ele: “A República de Angola desempenha um papel fundamental e muito importante para a recuperação da economia portuguesa”. O que tem isto que ver com o general? Nada e tudo. Trata-se de uma afirmação que deixa plasmado o pensamento reinante em Angola, já antes mencionado. Os dirigentes angolanos estão a investir em Portugal, por isso devem permanecer imunes a qualquer investigação, caso contrário desinvestirão, e Portugal entrará em falência. Por mais primários que raciocínios possam parecer, a verdade é que estão vertidos em papel num processo judicial: o general Higino Carneiro é um homem importante, representa grandes investidores em Portugal, razão pela qual não pode ser investigado e o inquérito deve ser arquivado.

Face a esta postura de arrogância assumida pelo general Higino Carneiro perante as autoridades portuguesas, em que se identifica com o MPLA e com o poder político angolano, não admira que esteja surpreendido pelo facto de se terem atrevido a abrir um processo-crime contra si em Angola, aplicando-lhe medidas de coacção. O general tem de se apresentar periodicamente às autoridades judiciais e está interdito de se ausentar do país.

Hoje, o general Higino Carneiro é arguido em seis processos-crime relacionados com a gestão danosa de Luanda enquanto governador (2016-17): peculato, violação de normas de execução do plano e orçamento, abuso de poder, associação criminosa e corrupção passiva e branqueamento de capitais.

Estranhamente, este general, que se fazia representante do próprio MPLA, não suspende agora o seu mandato de deputado, assim prejudicando enormemente o partido. O povo angolano e, em particular, os eleitores do MPLA, que ele diz representar, merecia esse gesto de dignidade, de que o general é incapaz.

Como disse o padre António Vieira, “quem quer mais do que lhe convém, perde o que quer e o que tem”.

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