O Acordo com o FMI

O pedido de Acordo Alargado ao Abrigo do Programa de Financiamento Ampliado que Angola fez ao FMI (Fundo Monetário Internacional), e por este aprovado, já está disponível para consulta pública.

O documento é bem elaborado, tecnicamente consistente e com pressupostos razoáveis (ver aqui e aqui), mas levanta uma dúvida: a adequabilidade de um programa deste tipo ao presente momento da política e da economia angolanas.

Angola enfrenta uma situação duplamente negativa. Em termos estruturais, encontra-se numa situação de monodependência excessiva do petróleo, que não propiciou um crescimento sustentável e libertador das amarras da pobreza. Esta é uma das condições permanentes da economia. Em termos conjunturais, o país vive uma época de estagnação da economia e de aperto financeiro. Há, portanto, dois tipos de problemas que se entrecruzam no momento actual: problemas de fragilidade económica permanente e problemas da crise presente.

O conteúdo do acordo com o FMI

O programa do FMI consta de uma Carta de Intenções e de um Memorando de Políticas Económicas e Financeiras.

Maka Angola analisa este Memorando, que é o documento regente das medidas concretas a adoptar.

Segundo o Memorando, o governo deverá adoptar determinadas medidas, que em concreto se traduzem no seguinte:

A) Ao nível da política fiscal (impostos e outras receitas do Estado e suas despesas):
– Diminuição da dívida pública para 65% em 2023;
– Diminuição do défice fiscal;
– Reformas fiscais.

B) Ao nível da política monetária e cambial (moeda em circulação e valor da moeda no estrangeiro):
– Controlo da base monetária;
– Flexibilização dos câmbios.

São também mencionadas medidas no âmbito da política do sector financeiro, gestão da dívida pública, reformas estruturais e governação.

No entanto, o grande enfoque é na política fiscal e na política monetária e cambial, e as medidas propostas são restritivas.

A política fiscal

Na política fiscal, o que se ambiciona é uma diminuição da dívida pública e do défice orçamental.

A dívida representa tudo aquilo que o Estado deve, enquanto o défice existe quando em cada ano o Estado tem despesas superiores às receitas.

São situações diferentes, mas que reflectem, geralmente, a mesma realidade: um Estado que gasta mais do que tem.

No âmbito do acordo com o FMI, para que a dívida pública desça, propõe-se, como primeira medida, que “as receitas petrolíferas extraordinárias decorrentes de preços do petróleo acima dos orçamentados [sejam] utilizadas para amortizar a dívida pública interna”. Esta primeira medida pode ser positiva, dependendo de quem detém dívida interna. Se forem os bancos nacionais, tal poderá activar o multiplicador monetário, fazendo com que as instituições financeiras emprestem mais e estimulem a economia. Diferente será se as entidades nacionais que receberem o pagamento da dívida ficarem com o dinheiro entesourado ou o transferirem para o estrangeiro.

Portanto, esta medida do FMI só será positiva se for devidamente acompanhada e monitorizada. Caso contrário, poderá servir apenas para “encher os bolsos” dos “marimbondos” angolanos com as mais-valias do petróleo. Seria irónico…

Ainda dentro da redução da dívida, o governo propõe-se adoptar, em 2019, um Imposto de Valor Acrescentado (IVA). Não sabemos ainda em que termos o IVA será introduzido, e que impostos vai ou não substituir.

Possivelmente, a introdução do IVA poderá ter efeitos restritivos na economia, o que não é promissor numa situação de estagnação. É um tema a acompanhar também com cautela.

Na rubrica referente ao défice orçamental é prometido que a massa salarial dos funcionários públicos será contida. Na mesma rubrica, acresce-se a redução das despesas com bens e serviços, bem como a diminuição das transferências e dos subsídios.

Passa-se, então, à “imposição de requisitos de eficiência às empresas públicas e da implementação de um programa de privatizações, ajustamento das tarifas de água (implementado em Agosto de 2018), tarifas da electricidade e transportes e a adopção de uma estratégia de ajustamento gradual dos preços internos dos combustíveis”.

Traduzindo o “economês” acima citado, isto quer dizer que os salários não vão subir, ou poderão mesmo ser reduzidos, e que as despesas do Estado e os preços de bens essenciais, como água, electricidade ou combustíveis, irão aumentar.

Consequentemente, em termos de política fiscal, o sinal que é dado é altamente restritivo. O Estado quer gastar menos e os preços vão subir.

O problema da política fiscal

A verdade é que, numa economia débil como a angolana, estas medidas poderão ser descabidas.

O problema essencial do Estado residia na corrupção e na deficiente organização das instituições. Há desperdício por todo o lado, uma vez que cada dirigente era estimulado a agir como um “grande bandido” e os funcionários públicos aliciados como “pequenos bandidos”, de modo que se movessem de acordo com os seus interesses privados, para obterem a sua “gasosa”.

Na realidade, nem se deve saber exactamente quanto é que o Estado gasta em cada sector, nem os números apresentados devem ser fiáveis.

Ora, quando um Estado viveu num paradigma corruptor, organizado segundo uma lógica de privatização de soberania, torna-se quase surreal vir aplicar uma receita económica que faria sentido para uma rica Inglaterra ou uma próspera Irlanda.

Não tem qualquer sentido aumentar preços e impostos numa economia que não funciona e no âmbito de um Estado desorganizado. É receita certa para desencadear o caos e a revolta.

Defesa de uma política realista

Uma política realista do FMI deveria, em primeiro lugar, financiar a organização do Estado de forma eficiente, a criação de serviços estatísticos adequados e promover reformas económicas para fazer com que os mercados funcionem. Angola precisa de reformar o Estado, ter estatísticas credíveis para apresentar e uma economia de mercado a funcionar.

E só quando a despesa for feita de modo racional e eficaz e a economia funcionar de forma semelhante a um mercado livre, só então o FMI deveria dedicar-se a definir patamares para a dívida e para a despesa.

Neste momento, o aperto fiscal, tal como proposto, não faz qualquer sentido, pois é um exercício teórico que muito provavelmente vai prolongar a crise actual. No limite, poderá mesmo perturbar as reformas políticas fundamentais que o presidente João Lourenço tem vindo a encetar.

Assim, embora reconheçamos a excelência teórico-técnica do acordo entre o FMI e Angola, receamos que este acordo esteja totalmente desfasado da realidade angolana e venha a constituir um sério obstáculo à transição política em curso e ao lançamento das bases para um crescimento sustentado do país.

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