Perigos dos Testas-de-Ferro: o Caso do Grupo Gema

O Tribunal Supremo, através do seu mais recente acórdão respeitante ao Grupo Gema, mostra quais são as consequências legais para os chefões que, sendo servidores públicos, usam testas-de-ferro nos seus negócios privados. O Tribunal Supremo deu razão a Pedro Januário Macamba, que conseguiu provar ser ele o legítimo sócio do Grupo Gema. Já o presidente deste grupo, José Leitão (ex-chefe da Casa Civil de José Eduardo dos Santos), viu ser considerada improcedente a sua alegação de que seria ele o verdadeiro sócio. O que aconteceu: José Leitão usou Macamba como seu testa-de-ferro, e agora está a sujeitar-se às consequências desse ardil.

No acórdão de 10 de Maio passado, o Tribunal Supremo confirmou a decisão do Tribunal Provincial de Luanda, relativa ao processo n.º 1423/14, que concluía que o Grupo Gema falsificava as assinaturas de Pedro Macamba nas actas dos sócios. Esta decisão e os fundamentos que a sustentam conduzem à conclusão de que Pedro Macamba é o sócio legítimo da empresa, e José Leitão não.

Ora, esta decisão do Tribunal constitui um desafio à habitual impunidade vigente em Angola, e significa que a partir de agora já é possível contestar e submeter à justiça, com maiores expectativas de imparcialidade judicial, práticas comerciais e empresariais semelhantes às da Máfia italiana, por exemplo.

Na década de 1980, em Itália, quando o combate à Máfia atingiu um nível apreciável de sofisticação e intensidade, os magistrados investigadores descobriram qual a sociedade comercial que supostamente controlava os interesses económicos de importantes grupos do crime organizado. Confiantes, identificaram os seus sócios nos registos das empresas e montaram uma grande operação para os capturar.

Quando puseram essa operação em marcha, deram consigo num belo lar de idosos, a identificar vários velhinhos que não faziam a mais pequena ideia do que se passava. Eram os testas-de-ferro dos padrinhos da Máfia… e a investigação esboroou-se como um castelo de areia.

Não é muito diferente o que acontece em Angola: há várias empresas pertencentes a dirigentes políticos que, por força da lei, não podem exercer funções empresariais, e que então nomeiam os seus jardineiros, estafetas ou motoristas como proprietários do seu património. Várias investigações do Maka Angola embateram de frente com grandes grupos económicos detidos por porteiros, secretárias e escriturários. Pessoas dignas, claro, mas sem qualquer fortuna ou espírito empresarial.

Um dos casos que temos seguido é o do Grupo Gema, um dos grandes grupos económicos angolanos, no qual pontifica José Leitão, antigo número dois de José Eduardo dos Santos. Muitos analistas consideram José Leitão o “pai” do capitalismo do saque em Angola. No ano de 1994 criou a GEMA (Sociedade de Gestão e Participações Financeiras), que tinha entre os seus associados várias pessoas politicamente expostas, como Carlos Maria Feijó ou Domingos Pitra Neto.

presidente do Grupo Gema, José Leitão

Uma vez que todos desempenhavam funções políticas relevantes e incompatíveis, a maior parte das vezes, com os negócios a que se dedicavam, foram “obrigados” a recorrer a testas-de-ferro, de modo a ocultarem a ilegalidade que estavam a cometer.

Este procedimento aconteceu no Grupo Gema, e foi confessado pelos seus mandatários num processo que correu no Tribunal Supremo e que opunha Pedro Januário Macamba ao Grupo. A história já foi aqui relatada. Importa agora recordar que os efectivos proprietários reconheceram ter recorrido à figura do testa-de-ferro, e que o Grupo Gema era detido na verdade por:

“– José Leitão, que ocupou sucessivamente, de 1988 a 2003, os cargos de secretário do Conselho de Ministros, director do Gabinete do PR (ministro junto da Presidência), e chefe da Casa Civil do PR (ministro junto da Presidência).
– António Pitra Neto, ministro da Administração Pública, Trabalho e Segurança Social, tendo ocupado outros cargos relevantes.
– Carlos Feijó, secretário do Conselho de Ministros à data da fundação do grupo; exerceu, a posteriori, os cargos de assessor para os Assuntos Regionais e Locais de José Eduardo dos Santos e de chefe da Casa Civil do PR.
– António Gomes Furtado detém vários cargos, como governador do Banco Nacional de Angola (BNA), presidente do conselho de auditoria do BNA, assessor do primeiro-ministro para os Assuntos Económicos.
– Joaquim Carlos dos Reis Júnor, que exerceu as funções de secretário do Conselho de Ministros e deputado do MPLA.”

Pedro Januário Macamba, que aparecia nos registos como detentor de participações, seria o subordinado de José Leitão, por este escolhido para a função de testa-de-ferro.

Depois de se ter tornado pública a decisão do Tribunal Supremo e a “confissão” da falsidade das imputações sociais do Grupo Gema, a controvérsia entre José Leitão e Pedro Macamba subiu de tom.

Em Agosto de 2017, Leitão escreveu a propósito deste assunto uma furibunda carta à direcção do jornal Visão, na qual chamava a Macamba “burlão e charlatão”, associando-o a várias pessoas identificadas como “vigaristas portugueses, charlatões, parasitas, vermes e paquidermes em estado adiantado de putrefacção” (sic).

Pelo meio do texto descabelado de Leitão percebe-se que existirá algum mal-estar entre os verdadeiros accionistas do Grupo Gema, pois o mesmo afirma que Macamba e os supostos paquidermes putrefactos estão “em conluio com alguns accionistas do próprio Grupo Gema”.

Acontece que esta carta produziu consequências, fazendo com que no passado mês de Maio Pedro Macamba apresentasse uma queixa-crime contra José Leitão por difamação, injúria e calúnia. Portanto, o enredo entre estas duas figuras continua a desenrolar-se, aparentemente tendo como pano de fundo um desentendimento entre os sócios “reais” do Grupo Gema.

O problema subjacente a esta questão é a insegurança jurídica e instabilidade que estas práticas, executadas para se fugir à lei, determinam. Não se sabe quem detém realmente as empresas, podendo-se criar um caos que em muitas situações conduz à falência do negócio, quando há desentendimentos entre accionistas e testas-de-ferro, ou entre accionistas que utilizam os testas-de-ferro.

Este é mais um exemplo da cultura de marginalidade em que dirigentes-empresários e ex-dirigentes se permitiram operar em Angola. Esta prática instituída deve ser combatida, tal como muitas outras com consequências semelhantes. São práticas perniciosas para o bom funcionamento da economia, num cenário onde prevaleça a segurança e onde se saiba o que pertence a cada um.

Mas a pergunta fica: quantos e quantos dirigentes utilizam testas-de-ferro nos seus negócios, criando um clima de insegurança para o investimento e a transparência das transacções?

 

[actualizado 24/08, 9:54]

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