Porto do Dande: Isabel dos Santos Ataca João Lourenço
No final do longo entardecer do seu mandato presidencial, José Eduardo dos Santos ainda teve tempo de assinar, a 21 de Agosto de 2017, dois dias antes das eleições gerais que iriam designar João Lourenço como novo presidente de Angola, o decreto presidencial n.º 207/2017, que aprovava o projecto do Porto da Barra do Dande. Este decreto tinha como objecto a concessão dos direitos relativos à construção e exploração desse porto a uma empresa desconhecida chamada Atlantic Ventures, S.A.
Facilmente se descobriu que por detrás desta empresa misteriosa estava a sempiterna Isabel dos Santos. Dentro das regras da sucessão patrimonial que o velho presidente levava a cabo, um dos portos, o do Caio, ficou para um dos seus filhos (e para o seu sócio, Jean-Claude Bastos de Morais), e o outro porto calhou à filha Isabel. Neste caso, o Porto do Dande. De acordo com a mesma lógica, já tinha oferecido bancos a todos os seus vários filhos, e o mesmo aconteceu com vários terrenos e outro património.
João Lourenço, dentro da sua política da caneta, revogou esse decreto sobre o Porto do Dande e retirou a concessão oferecida a Isabel dos Santos pelo seu pai. No discurso que proferiu no Parlamento Europeu, a 4 de Julho passado, o novo presidente afirmou: “Ali, onde ainda foi possível, foram anulados contratos bilionários com a construção e gestão de importantes infra-estruturas públicas, caso do Porto da Barra do Dande, por não se terem respeitado os mais elementares princípios da transparência e da concorrência.”
Agora, Isabel dos Santos, através da sua agência portuguesa de comunicação, vem reagir a essa perda de forma verbalmente violenta, fazendo lembrar a tirada de Bartolomeu Dias quando viu o negócio da Air Connection Express a ir pelos ares.
Das muitas considerações veiculadas nesse comunicado, há uma que nos interessa particularmente, pois nela reside, em termos legais, um dos maiores atropelos que José Eduardo dos Santos fez às suas próprias leis, nestes processos de atribuições de prendas aos filhos e associados. Trata-se do respeito pelos princípios da transparência e da concorrência, nomeadamente, o cumprimento da Lei da Contratação Pública.
Vem Isabel dos Santos dizer, e citamos: “A lei aplicável a este projecto é a lei das concessões portuárias e foi correctamente aplicada pelo anterior Executivo neste processo. A lei dos Contratos Públicos – que poderia ditar a realização de concurso público – não se aplica a contratos de concessões portuárias, ao contrário do que agora assume o actual Executivo.”
Com este argumento, Isabel dos Santos pretende retirar a concessão assinada pelo pai da zona de ilegalidade em que se encontrava, por não ter seguido o procedimento correcto para a sua adjudicação. Na realidade, sendo exigido um concurso público (ou similar) para a concessão do porto e este não tendo tido lugar, como efectivamente não teve, facilmente João Lourenço poderá mandar Isabel dos Santos embora. Caso contrário, terá mais dificuldade. Portanto, neste ponto reside o cerne da discussão jurídica.
Contudo, muito facilmente se compreende que o argumento de Isabel dos Santos não tem cabimento. A verdade é que a concessão que lhe foi oferecida pelo pai foi engendrada à margem da lei.
O diploma que Isabel dos Santos pretende ver aplicado à sua situação não está bem identificado. Possivelmente será o decreto n.º 52/97, de 18 de Julho, que aprova as Bases Gerais das Concessões Portuárias. É muito duvidosa a aplicação deste diploma à concessão complexa, e não meramente de movimentação de cargas, atribuída a Isabel dos Santos no Porto do Dande, em virtude da limitação do objecto da norma realizada pelo artigo 4.º do decreto. Mas, para efeitos do raciocínio aqui em causa, admitamos o argumento jurídico de Isabel. Percorrendo o articulado dessa norma, não se vislumbra qualquer disposição acerca dos procedimentos relativos à formação do contrato. Em lado algum se encontra referência à exclusão de contrato público ou outro, bem como qualquer excepção à aplicação de normas gerais sobre contratação pública. Pelo contrário, no artigo 2.º refere-se que o regime do contrato administrativo é o aplicável às concessões portuárias. E em vários artigos (7.º, n.º 2 ou 29.º) aparecem referências à figura do caderno de encargos, uma figura típica, ainda que não exclusiva, da contratação pública, designadamente do contrato público.
Não havendo norma expressa a excepcionar a formação de uma concessão portuária e submetendo-a ao regime normal dos contratos administrativos, somos remetidos para a Lei da Contratação Pública, lei n.º 9/16 de 16 de Junho, que se encontrava em vigor na altura da atribuição da concessão do Porto do Dande a Isabel dos Santos. Nos termos do artigo 2.º, a), a lei é aplicável a todos os contratos cuja formação não esteja submetida a um regime especial. Vimos já que a formação de contratos de concessão portuária não está sujeita a regime especial, antes remetendo para a contratação administrativa normal. Acresce que a própria lei tem um sentido e alcance abrangentes. Isto quer dizer que a nova lei dos contratos públicos existe para estender o mais possível o âmbito da sua aplicação. Isto é comprovável pela extensão que é feita às Parcerias Público-Privadas, no artigo 2.º, b), bem como a aplicação obrigatória dos Títulos V ou VI a todos os contratos públicos, mesmo os não regulados pela lei (artigo 2.º, n.º 2). Assim sendo, qualquer interpretação tem de levar em conta este desiderato: alargar a aplicação da Lei da Contratação Pública.
Em resumo, quando alega que o pai lhe poderia ter entregado a concessão do Porto do Dande sem qualquer procedimento transparente e concorrencial, Isabel dos Santos não tem razão.
Parece que a transparência é uma dor de cabeça permanente para a filha do ex-presidente. A transparência sem dúvida incomoda.