Autarquias: o MPLA e os Seus Golpes contra a Democracia
Passeando pela floresta emaranhada de propostas legislativas que o ministro Adão de Almeida produziu para criar as autarquias locais, deparámos com um daqueles monstrinhos que pululam nas histórias de encantar.
O monstrinho é o artigo 6.º, n.ºs 2 e 4 da proposta de lei da transferência de atribuições e competências do Estado para as autarquias locais.
O artigo 6.º, n.º 2 determina: “Sem prejuízo ao princípio da igualdade e o da unicidade do Estado, concretizando o princípio da proporcionalidade, a transferência de competência e atribuições pode variar de autarquia local para autarquia local em função da adequação da natureza desta ao exercício da competência em causa.” Já o artigo 6.º, n.º 4 estabelece que: “Sem prejuízo do disposto no número 1, excepcionalmente, se uma autarquia local não exerce de forma eficiente as atribuições e competências transferidas, após verificação dos órgãos competentes, de acordo com o princípio da subsidiariedade, a administração central pode requerer junto da Assembleia Nacional a autorização para exercer a referida atribuição ou competência.”
Estas duas normas, envoltas num linguajar jurídico sonolento, são dois instrumentos fundamentais que o poder central divisou para acabar com qualquer autarquia local que lhe seja hostil. Na realidade, constituem uma forma de terminar, por escolha discricionária, com qualquer poder político autárquico. São uma espécie de cláusula marcha-atrás.
Vejamos de perto.
A proposta de lei da transferência de atribuições e competências do Estado para as autarquias locais será o diploma que regulará os poderes que o Governo de João Lourenço transmite para as novas autarquias.
Como se sabe, neste momento, todo o poder está em João Lourenço e na maioria do MPLA na Assembleia Nacional. A criação das autarquias distribui um pouco desse poder pela câmaras municipais e seus presidentes, pelo país fora. Portanto, forçosamente, em termos de poder político, cada autarquia representa um pedacinho de poder que é transferido do centro para cada espaço geográfico. É sobre essa transferência de poder que trata esta Lei.
E é por isso que surgem estas duas normas do artigo 6.º. A primeira, contida no artigo 6.º, n.º 2, diz-nos que podemos transferir poderes diferentes para autarquias diversas. Portanto, não se trata só do gradualismo geográfico que já analisamos algumas vezes (ver aqui, aqui e aqui), mas de um subgradualismo dentro do gradualismo. Isto quer dizer que as autarquias criadas inicialmente podem deter poderes muito desiguais. Por exemplo, a autarquia de Luanda pode ser dotada de umas competências, enquanto a de Ondjiva terá outras dissemelhantes, embora sejam instituídas ao mesmo tempo.
Em termos políticos, pode acontecer que uma autarquia em que se espera que ganhe a UNITA veja poucas competências atribuídas, enquanto outra em que vá ganhar o MPLA tenha muitas competências. Esta norma permite este jogo. Na realidade, as autarquias não vão ser sequer implantadas de forma gradual, mas de forma imprecisa ou, melhor dizendo, arbitrária. Arbitrária porque depende apenas da decisão do MPLA. De facto, tudo continua nas mãos do poder central. Este só dá o que quer a quem quiser. E pode tirar.
Entra o artigo 6.º, n.º 4. Aqui prescreve-se que o poder central, através da Assembleia Nacional – leia-se, maioria do MPLA –, pode retirar as competências que atribuiu a uma autarquia e voltar a exercê-las directamente. Costumava-se dizer: “Quem dá e volta a tirar, ao Inferno vai parar”. Não é aqui o caso. Pode-se dar e tirar.
Imaginemos que em determinado município da UNITA esta desenvolve um excelente trabalho na área dos lixos, criando condições para vir a ganhar eleições em Luanda. O governo apoiado pelo MPLA pode retirar a competência dos lixos ao município e voltar a tratar do assunto directamente, acenando com os louros do sucesso nessa área. Note-se que se fala do MPLA por que é este partido que detém presentemente o poder. O que esta proposta de lei faz é entregar estes mecanismos de esvaziamento das autarquias a quem detém o poder no governo central.
Em resumo, o que temos nesta proposta de lei são dois alçapões legais: um permite que o governo transmita diferentes competências a diversas autarquias criadas ao mesmo tempo; outro permite que mais adiante lhes retire essas competências.
Num quadro do Estado de direito, em que predomina o princípio da confiança e da segurança jurídica, estas normas armadilhadas não têm qualquer sentido, apenas reforçando a ideia de que a institucionalização das autarquias locais é um processo-fantasma a que não se pretende conceder conteúdo real.
Enquanto João Lourenço luta contra a corrupção, o MPLA luta contra a democracia e a vontade popular. É o poder totalitário e a mentalidade soviética do MPLA, em termos de organização do Estado, que fala mais alto. É a democracia de papel.