O Esquema das Privatizações de João Lourenço

João Lourenço, através do Despacho Presidencial n.º 19/18 de 20 de Fevereiro, criou uma Comissão de Preparação e Implementação do Processo de Privatização em Bolsa de Empresas de Referência, presidida pelo ministro de Estado do Desenvolvimento Económico e Social, Manuel Nunes Júnior.

Esta Comissão, que dispensava um título tão confuso e comprido, tem como objectivo preparar a privatização em bolsa de várias empresas estatais angolanas. As empresas a privatizar serão propostas pela Comissão (cfr. n.º 7 do Despacho) e essa privatização, além de ser feita em Bolsa, procurará simultaneamente arrecadar dinheiro para o Estado, reforçar a capacidade empresarial nacional e possibilitar uma ampla participação dos cidadãos angolanos na titularidade das empresas (cfr. n.º 2 do Despacho, em especial as alíneas c), d) e)).

A Comissão, através de um Grupo Técnico, teria 60 dias, a partir da data da publicação do Despacho, para apresentar o seu relatório-quadro com a proposta das empresas a privatizar. Quer isto dizer que a 20 de Abril de 2018 deveria ter sido apresentado o referido relatório. Desconhecemos se tal aconteceu ou não. A única notícia que veio a público refere que o Estado pretende privatizar 74 empresas, mas não dá mais esclarecimentos.

A ideia das privatizações começou nos anos 1980, com Margaret Thatcher, então primeira-ministra da Grã-Bretanha, país que atravessava, nessa época, graves dificuldades económicas e financeiras. As empresas públicas britânicas eram vistas como ineficientes, pouco competitivas e pesando em demasia no tesouro de Londres. A solução de Thatcher foi vendê-las. Com essas vendas, não só arrecadou dinheiro, como transformou empresas moribundas em exemplos do capitalismo mais avançado e dinâmico. A Inglaterra, que se encontrava em declínio no início da década de 1980, tornou-se de novo um farol da economia mundial. Ao vender empresas públicas britânicas, Thatcher introduziu a ideia do capitalismo popular. Isto queria dizer que uma parte das novas acções deveria ser entregue ao público em geral, e não a determinados empresários.

O capitalismo popular assenta na ideia de que todos, numa sociedade, devem ter a oportunidade de possuir propriedades e acções de empresas. O capitalismo popular defende uma disseminação mais ampla da riqueza, o que é bem necessário em Angola.

Se repararmos, esta noção de capitalismo é retomada pelo Despacho Presidencial de João Lourenço (n.º 2, alínea e)). A questão que se coloca é a da inexistência em Angola de uma classe média com meios económicos para comprar acções de empresas, bem como a ausência de informação adequada sobre o funcionamento das bolsas. A forma como pode distribuir-se acções das empresas angolanas pela população exige uma reflexão profunda. Eventualmente, uma solução será a entrega de uma percentagem de acções aos trabalhadores das próprias empresas, sob a forma de bónus ou prémio.

O sucesso das privatizações no Reino Unido, nos anos 80, desencadeou a adopção de políticas idênticas por todo o mundo. O problema foi que nem sempre o sucesso britânico se repetiu. Existiram boas e más privatizações, bons e maus resultados. E certamente que a experiência do capitalismo popular thatcheriano não se replicou com frequência.

Na antiga União Soviética, após a queda do Muro de Berlim e a desagregação do império comunista, ocorreu uma vaga de privatizações. A Rússia e várias antigas repúblicas soviéticas foram submetidas a uma “terapia de choque” de que fazia parte a rápida e apressada privatização de empresas estatais. O resultado foi desastroso. Por valores ridículos, a maioria das boas empresas foi parar às mãos de indivíduos ligados ao poder político, que em poucas horas se tornaram bilionários e oligarcas. Foi uma espécie de rapina privada dos bens públicos.

O mau exemplo das privatizações pós-soviéticas deve servir de caso de estudo para a Comissão de Manuel Nunes Júnior, de modo que não se repitam os mesmos erros em Angola. Aliás esse perigo seria uma repetição das privatizações dos anos 90, sobretudo do parque industrial de Luanda, a favor da nomenclatura do MPLA, que levou à sua falência, deixou milhares de trabalhadores no desemprego, mas enriqueceu muitos dirigentes, familiares e amigos.

De facto, em Angola, muito facilmente o processo de privatizações se pode transformar numa mera passagem de empresas da esfera pública para a esfera dos oligarcas do regime, sejam eles os do costume – Manuel Vicente, Kopelipa, Dino, etc. – ou novos amigos de João Lourenço em estágio acelerado para substituírem os antigos oligarcas.

Este é sem dúvida um dos alertas fundamentais no que diz respeito a eventuais futuras privatizações em Angola: evitar que constituam uma mera venda de empresas a preços de saldo aos amigos do regime.

As privatizações em Angola não devem ser vistas como uma panaceia. A história de clientelismo e rentismo de Angola indicia como provável que o processo de privatizações seja meramente uma transferência de propriedade para amigos do poder político. A verdade é que não existem muitos verdadeiros empresários em Angola, mas sim beneficiários do regime, que em condições de mercado rapidamente deixam as suas empresas ir à falência. Também é difícil antever uma disseminação séria de capital pela população. Resta a alternativa de vender tudo a estrangeiros, que por si só não garante nada e cria problemas graves de distorção para uma economia ainda não desenvolvida como é a angolana.

Face a estes vários problemas bem reais, qualquer quadro de privatizações deveria prever um método tripartido de proceder a essas privatizações, com um bloco para empresários angolanos, um bloco para trabalhadores da empresa e população em geral, e um bloco para investidores estrangeiros. E talvez, face à falta de liquidez da Bolsa em Angola, encarar a hipótese de uma emissão dupla em duas bolsas. Porque não usar uma Bolsa asiática?

Ao proceder-se de modo demasiado doméstico e pouco transparente, como está a acontecer até agora, poderá tornar o processo de privatizações numa mera operação de roubo e desvio de fundos. Mais uma, portanto.

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