O Caso dos “Terroristas Islâmicos” no Tribunal Supremo

A 20 de Fevereiro de 2018, o Tribunal Supremo (TS) confirmou a decisão do Tribunal Provincial de Luanda, emitida a  24 de Novembro de 2017, de condenação de Angélico Bernardo da Costa, Joel Saide Salvador Paulo, Bruno Alexandre dos Santos e Landu Panzo José a três anos de prisão efectiva por crime típico de organização terrorista, neste caso de índole islâmica, ligada ao denominado  Estado Islâmico/Daesh.

O alto Tribunal reconhece que os factos concretos em que se baseia a condenação se resumem à “leitura de um simples livro, a assistência de um vídeo de material de propaganda e a criação de uma página do Facebook” (cfr. p. 6 do acórdão do TS). Destes simples factos, o Tribuna Provincial – secundado pelo Tribunal Supremo – deduziu que os arguidos tinham a intenção de, no futuro, praticarem actos terroristas no território angolano em nome do Daesh.

Não teríamos dúvidas em subscrever a decisão do Tribunal Supremo caso esta se fundamentasse em argumentos consistentes. No entanto, assim não acontece. A decisão do TS coloca levanta duas questões importantes, as quais põem em evidência a injustiça do ordenamento jurídico angolano.

Em primeiro lugar, conforme Rafael Marques já descreveu, as inquirições policiais aos condenados foram feitas debaixo de tortura. O caso concreto reportado por Rafael refere-se a Aisha Lopes, que acabou por ser absolvida, mas permite entender que a tortura foi de facto o método seguido nesta investigação. As reportagens que denunciam investigações policiais baseadas em tortura são constantes, e era já tempo de o Tribunal Supremo se pronunciar de forma veemente acerca desta prática, que obviamente é proibida pela Constituição e pelas leis angolanas, devendo ser nula toda a prova obtida desta forma. Não pode o Tribunal Supremo continuar a ignorar os constantes relatos de tortura efectuada pela Polícia sem tomar medidas concretas. O Tribunal Supremo tem, portanto, de criar uma forma de escrutínio sobre os modos de obtenção de prova, afastando todas a provas obtidas debaixo de tortura.

A segunda questão é a do salto quântico dado pelos ilustres juízes conselheiros, que da leitura de um livro, criação de página no Facebook e visionamento de um vídeo deduzem que se está perante uma organização terrorista cuja finalidade era praticar actos terroristas em Angola. Se isto fosse verdade, não hesitaríamos em concordar com a condenação. Acontece que, ao lermos o acórdão, não vislumbramos qualquer elemento integrador que dê consistência a essa dedução.

Na verdade, o Tribunal Supremo reconhece que se está perante uma área nova de criminalidade cujas respostas são “mais políticas que jurídicas” (p. 5 do acórdão). No fundo, o acórdão dá a entender que nesta área do terrorismo (ou suposto terrorismo) vigora um direito penal alternativo – aquilo que a doutrina definiu como o “direito penal do inimigo”. Este acórdão do Tribunal Supremo resulta, precisamente, da aplicação desse “direito penal do inimigo”.

O conceito de “direito penal do inimigo” resulta dos trabalhos do professor alemão Günther Jakobs, segundos os quais haveria casos de necessidade especial, designadamente quando a segurança da vida normal estivesse em perigo, em que se justificaria um direito penal especial contra inimigos. O Estado não sujeitaria os seus cidadãos a este direito, mas apenas os seus inimigos. Dito de outro modo, o que Jakobs defende é a existência de dois direitos penais. Um direito geral, aplicável à generalidade dos cidadãos, outro especial, aplicável aos inimigos do Estado, àqueles que quisessem derrubar a ordem constitucional.

De acordo com esta dinâmica, Jakobs considera que é possível criar um direito penal do inimigo que consistirá no seguinte:

            1. Criminalizar condutas que não constituem perigo real para interesses legalmente protegidos;

2. Aumentar a severidade das punições para além da ideia da proporcionalidade, aplicando mesmo “punições draconianas”.

Facilmente se percebe que o Tribunal Supremo seguiu o item 1 da abordagem de Jakobs, criminalizando condutas normais, como ler um livro ou abrir uma conta no Facebook.

Não é a primeira vez que a doutrina alemã navega neste género de soluções. Nos anos 1920/1930, o famoso teórico jurista nazi Carl Schmitt gerou uma distinção entre “Freund und Feind”, “amigo e inimigo”, como base para o desenvolvimento de dois tipos diferentes de lei: uma lei para cidadãos normais e de dentro, e uma lei para pessoas de fora, ou inimigos. Sabemos as consequências deste tipo de abordagem, que permitiu considerar os judeus como “pessoas de fora” ou inimigos e criar leis próprias para eles, como foram as Leis de Nuremberga de 1935, e que levaram ao Holocausto.

Em resumo, este tipo de abordagens subjectivas e dominadas pelo medo acabam sempre por se virar contra os cidadãos pacatos e pacíficos, tornando-se instrumentos de domínio tirânico. É por essa razão que a decisão do Tribunal Supremo sobre os supostos terroristas é tão condenável. Além de se basear em muitas provas obtidas através da tortura, torna crime actos perfeitamente normais.

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