Garantia Seguros e Construtel: a Extraordinária Ubiquidade de João Maria de Sousa e C.ª

Dois generais juristas – um presidente do Tribunal Constitucional, outro ex-procurador-geral da República – são as pessoas-chave da Garantia Seguros S.A., que há quase um ano não paga ordenados aos seus funcionários. A Garantia Seguros opera em Huíla, Cabinda, Benguela e Luanda (onde tem a sede encerrada, por falta de pagamento de rendas).
Actualmente, a companhia vive uma situação desesperada. Os trabalhadores estão há mais de 15 meses sem salário. Já enviaram participações ao presidente da ARSEG (Autoridade Reguladora dos Seguros), Aguinaldo Jaime, e à IGT (Inspecção Geral do Trabalho), mas não obtiveram qualquer iniciativa ou sequer resposta. Recentemente, também escreveram ao ministro das Finanças, Archer Mangueira, sem qualquer sucesso.
Os dois accionistas relevantes e conhecidos são o ex-procurador-geral da República, general João Maria de Sousa, com 7% do capital social, e o presidente do Tribunal Constitucional, o recém-promovido brigadeiro Manuel da Costa Aragão.
A acta da assembleia-geral da Garantia Seguros S.A., de 29 de Setembro de 2015, confirma claramente o engajamento pessoal dos magistrados João Maria de Sousa e Manuel Aragão na tomada de decisões sobre a gestão da empresa.
Assim, o então PGR, João Maria Moreira de Sousa, e o então presidente do Tribunal Supremo, Manuel Aragão, atropelavam a Constituição com toda a arrogância e impunidade, violando o princípio de dedicação exclusiva.
Os magistrados, sejam judiciais, sejam do Ministério Público, não podem exercer qualquer outra função pública ou privada, excepto as de docência e de investigação científica de natureza jurídica (artigo 179.º, n.º 5 da Constituição).
Acresce que, pelo menos no caso de João Maria de Sousa, em 2010, o Ministério Público teve intervenção directa nos assuntos da Garantia Seguros S.A., a propósito da detenção do então administrador português da companhia, Pedro Morais Leitão, em Luanda (ver aqui e aqui).
Portanto, o sócio João Maria de Sousa, ao mesmo tempo procurador-geral da República, esteve nesta situação em óbvio conflito de interesses, o que comprova, de forma exemplar, o perigo que representa o desempenho de funções privadas pelos magistrados e a necessidade urgente de fazer com que se cumpra a regra constitucional de dedicação exclusiva.

General João Maria de Sousa, que, juntamente com o brigadeiro Manuel Aragão, quebrou o princípio constitucional da dedicação exclusiva, acumulando cargos na alta magistratura e no sector privado.
Esta situação concreta de intervenção do Ministério Público na Garantia Seguros, referente a Pedro Morais Leitão, prende-se com a participação do famoso investidor português Miguel Pais do Amaral nesta companhia. Este terá adquirido uma posição de 45% na Garantia Seguros S.A. em 2009.
Como explica fonte da empresa, “o capital social angolano entrou de manhã e saiu à tarde. Serviu apenas para criar a empresa. O investimento inicial e os custos operacionais iniciais foram todos suportados pelo accionista português Pais do Amaral. Os sócios angolanos fizeram-lhe a cama e afastaram-no à força, e os seus quadros foram-se embora”.
Fome e privações
Temos então dezenas trabalhadores que passam fome e privações constantes, sem receberem qualquer atenção das autoridades e dos magistrados que são os donos da companhia.
Os trabalhadores afirmam que a companhia tem um volume de negócios estimado em três milhões de dólares por ano, acrescidos dos movimentos de co-seguro Petroquímica, Aeronáutico e Diamante, totalizando um valor sete milhões de dólares por ano. Consequentemente, face a estes números, os empregados acusam o presidente da companhia, João Raimundo Belchior, de se apropriar das receitas da empresa para seu uso e gastos pessoais.
Os funcionários, na penúria, têm empreendido vários esforços para sustentar a companhia. Por exemplo, muito recentemente, redobraram iniciativas no sentido de aumentarem o volume de vendas e de cobrarem os co-seguros. Tal situação resultou na entrada de aproximadamente 600 mil dólares nos meses de Agosto e Setembro, acrescidos de pagamentos feitos pela ENSA (recebimentos de co-seguro). Os trabalhadores pensavam que este valor serviria para pagar os salários em atraso até àquela data. Contudo, assim não aconteceu, e aparentemente o dinheiro teve outro destino: deslocações privadas ao estrangeiro do presidente do Conselho de Administração, João Raimundo Belchior, e pagamento das suas despesas pessoais.
A Garantia Seguros S.A. enfrenta um problema de liquidez muito grave. Esse problema não é novo e foi desconsiderado pelos sócios. Na acta da Assembleia-Geral de 29 de Setembro de 2015, os sócios, incluindo os generais-magistrados, reconheciam a existência de graves problemas de liquidez e sustentabilidade da empresa, os quais obrigavam à realização de um aumento de capital. No entanto, quando confrontados com a questão, os sócios preferiram adiar a tomada de qualquer medida. O mesmo aconteceu com as autoridades. Portanto, este não é um problema de hoje – já tem, pelo menos, três anos. Três anos de deterioração.
Quem é João Raimundo Belchior e o golpe da Construtel
Além da participação dos generais-magistrados, em resumo, os trabalhadores imputam a João Raimundo Belchior a responsabilidade última pelo mau estado da empresa. Acusam-no de ser um mau gestor e de desviar dinheiro em proveito próprio, conforme demonstram vários documentos em nossa posse.
João Raimundo Belchior faz uso abundante da sua estreita ligação a João Maria de Sousa, de quem é sócio noutra empresa, a que fizemos referência recentemente.
Trata-se da Construtel Lda., empresa formada a 27 de Outubro de 2006. Nela, João Raimundo Belchior, João Maria de Sousa e Carlos de Jesus detinham, cada um, 30% do capital, cabendo os restantes 10% a Abreu Tadeu.

João Raimundo Belchior, presidente da Garantia Seguros
A segunda empresa, com o nome facilmente confundível de Construtel Serviços Lda., foi criada aos 28 de Dezembro de 2008, precisamente na altura em que a primeira, Construtel Lda., começou a prestar serviços à Unitel, com um contrato valioso para a construção de infra-estruturas de telecomunicações e alguns trabalhos pontuais de engenharia e manutenção de portais.
Num daqueles golpes de magia que acontecem no universo “empresarial” angolano, os sócios João Belchior e João Maria de Sousa, cada um com 30%, mais a Construtel Lda, com 40%, formaram a Construtel Serviços, Lda, sem o conhecimento do sócio Carlos de Jesus.
Acto contínuo, a Construtel Serviços passou a receber os proventos dos contratos da Unitel e de outras iniciativas lucrativas, como prestadora de serviços da Construtel Lda., e esta última apresentava sempre resultados negativos. Enquanto Belchior, na qualidade de gerente, executava as maracutaias, o general-procurador João Maria de Sousa assinava as actas da Assembleia-Geral, legitimando a fraude.
Carlos de Jesus, sócio-fundador, foi afastado dos proventos quer de uma, quer da outra Construtel, e João Belchior e João Maria de Sousa passaram a ser os beneficiários do golpe. Em resumo, todo o património, direitos e clientela da Construtel, Lda. foram transferidos para a Construtel Serviços, Lda., de forma dolosa.
Esta situação originou um processo criminal, que foi arquivado por falta de provas pelo procurador-geral da República adjunto, Domingos Salvador André Baxe, dependente hierárquico de João Maria de Sousa (Processo 1069/14-04). João Maria de Sousa desfilou no caso com os seus dois chapéus: o de empresário e o de procurador-geral da República. Uma situação empresarial em que era interveniente acabou no foro criminal debaixo da sua alçada.
Entretanto, em 2016, o sócio lesado abriu um processo-crime na Segunda Sala do Cível do Tribunal Provincial de Luanda. Mas, como a justiça é uma verdadeira palhaçada em Angola, há dois anos que o processo não tem despacho do juiz.
Em resumo
Apesar de ter tido sócios tão famosos e poderosos, a verdade é que os trabalhadores da Garantia Seguros não recebem ordenados há mais de um ano, e acusam o presidente do Conselho de Administração, João Raimundo Belchior, de desviar fundos, sem que ninguém faça nada. Os accionistas não injectam capital, nem controlam o comportamento de Belchior, enquanto as autoridades ignoram passivamente o tema.
E assim vai o país, como bem diz o jornalista Mariano Brás. Prevalece a impunidade, e o povo sofre, sem acesso à justiça, como os trabalhadores da Garantia Seguros. O resto é fogo-de-artifício.